6 de set. de 2011

Kamila

Por Marcia Barbieri

Não tinha útero, retirou há dois anos. A costura vertical da boca do estômago até a vagina denunciava o trajeto do último sopro. O teu sexo, antes de ser sagrado, era uma ferida exposta, branca, onde pousavam pássaros carniceiros. Entre suas ancas lâminas cegas disputavam o oco. A porra escorria entre as ruínas de suas pernas raspadas com gilete. O líquido se diluía no asfalto quente. Era verão e não estávamos em Paris. Porque em Paris até as putas soam melancólicas. Sinos em sintonia.

Alguns afirmavam que era uma vadia e trocava o corpo por um gole de birita. Seu andar flácido acabava legitimando tal versão. A mim, parecia apenas uma mulher desiludida, um pouco envelhecida pelo fumo e pela beleza do cais. Uma madrugada durante um solstício. Acordamos e já amanheceu claro tarde demais.

- Um cigarro?

- É filtro amarelo?

- Não.

- Então aceito, não quero morrer de câncer antes dos trinta.

- Engraçado, você pensa engraçado.

- Por que não quero morrer antes dos trinta?

- Não, porque acredita que os filtros brancos te livrarão da morte.

- Não foi isso que falei, com o filtro branco vivo pelo menos até os quarenta. Pra quê quero mais?

- É, uma boa idade pra morrer.

- É o que eu acho.

- Qual é o seu preço?

- Quanto você pode pagar?

- Trinta.

- Trinta é o meu preço.

- Podemos ir a pé, moro perto, duas ruas pra cima.

Ela foi andando, dois passos a minha frente, como se soubesse o caminho. Entrou sem pedir licença. Tirou a roupa. Apertei seus seios e eu poderia jurar que ela não tinha mais do que vinte anos. Os bicos eram farpas roçando e fodendo minha língua. Ela exigiu ser enrabada. Depois da transa adormeceu. Quase materna, quase verdadeira, quase santa.

Acariciei seus braços com o verso das unhas, a veia saltou grossa e roxa. Fiz um x com a caneta bic. Peguei a seringa e injetei. Tinha tara em observar os mortos de heroína. Ela abriu os olhos. Pediu um cigarro. Filtro branco. Queria viver até os quarenta. Overdose.