13 de ago. de 2011

A literatura e o legista: o excesso do real - Malagueta # 16

Por Marcia Barbieri

Alguém já reparou nos caminhões, uma espécie de frigorífico ambulante, cheios de carnes penduradas na frente dos supermercados? Eles parecem me perseguir, é incrível, toda vez que vou fazer compras encontro esses caminhões descarregando. Fico seguindo aqueles homens de branco, grandes e sujos de sangue, até o açougue. Fico em transe ao me deparar com uma bela carcaça de boi, a primeira coisa que me vem a cabeça é a literatura, a segunda, a tela de Soutine, linda, sincera, realista pervertendo o real, as pinceladas animalescas e delirantes. Se Soutine não o tivesse feito antes, eu com certeza pintaria aquela carcaça. Lembro da frase de um entre tantos escritores “geniais”: esqueça a realidade, ela não é importante, disse em uma das diversas receitas infalíveis de se fazer uma boa literatura. Eu quase concordei, a realidade em excesso me causa náuseas. Mas espera aí, como assim, a realidade não é importante? Não produzimos arte antes de engolirmos o real, após isso, então claro, regurgitamos e encontramos a arte, quando isso não ocorre, na pior das hipóteses temos uma bela indigestão. O problema é a literatura apenas mimetizar a realidade, como um repórter, dissecá-la, sem passar pelo filtro artístico. Alegam sinceridade, eu afirmo que é falta de originalidade.

Entretanto, tão irritante quanto à literatura-repórter ou literatura metida a legista é esse culto cego, quase religioso, às receitas literárias. Está anunciado em todos os outdoors PRODUZIMOS ESCRITORES EM SÉRIE. O admirável mundo novo literário. A literatura está perdendo a marginalidade, está se tornando mais um formato acadêmico, como os ensaios, repletos de regras, de polidez. Segundo Faulkner Não existe um jeito mecânico de realizar a escrita, não existe atalho. O jovem escritor será um tolo se seguir uma teoria. (...) O bom artista acredita que ninguém é bom o suficiente para lhe dar conselhos.[1]

A redundância, por exemplo, muitas vezes utilizada como efeito sonoro, hoje é condenada sem direito à fiança. Desconfio que se um autor se atrever a usar metáforas será condenado à prisão perpétua. É preciso uma literatura seca, contida. Apenas relate o que você vê, não interfira no processo das coisas. Não encontramos erros nessa nova geração, não encontramos períodos muitos longos. Crises existências? Isso é coisa de frouxos. Além do mais todos os personagens antes de serem aprovados para o cargo fazem anos de análise. Dessa forma, não ficam se derramando em sentimentalismos baratos. Hamlet jamais teria sido aprovado. Ser ou não ser? Que coisa ridícula!!! Literatura não é metafísica. Quem é não tem dúvidas.

Os sinais de pontuação se resumiram ao ponto, à interrogação e ao travessão. Espero que nenhum escritor se atreva a colocar reticências ou mais de uma exclamação!!!!!! Como posso não me revoltar em um mundo cheio de preceitos? Agora as amarras ameaçam também a literatura, um espaço supostamente libertário.

Muitos escritores estão produzindo literatura como uma arte menor, imediata, despretensiosa. Não estou querendo afirmar que o escritor é um Deus e esteja acima dos outros mortais. No entanto, é evidente que a arte precisa ser sentida, não é um simples processo mecânico. Qualquer um pode fazer um texto contendo uma bela história, uma técnica perfeita. Porém, poucos poderão fazer explodir desse texto uma verdade que convença o leitor. Gostei muito da expressão acatada por Borges, diversos escritores apenas colocam o chapéu de escritor, sabem a hora certa em que precisam se tornar tristes: Eles aprenderam a escrever do mesmo modo como um homem pode ter aprendido a jogar xadrez ou bridge. Eles não eram realmente poetas ou escritores. Era só um truque que aprenderam e aprenderam pra valer.[2]

A nova literatura almeja ser uma grande legista do mundo contemporâneo. Toda literatura, em qualquer tempo e espaço representa em algum grau a realidade, no entanto, isso é um processo natural. O que precisamos tomar consciência é que a literatura não é um registro histórico, um relato, um olhar imparcial do real, uma dissecação. Quando olhamos a carcaça de Soutine não reparamos o quanto ela reproduz do real, mas o quanto ela reproduz do olhar contaminado do pintor. Eu só acredito em uma literatura assim, sendo cega, marginal, contenha toda parcialidade do escritor, o olhar sujo, contaminado, uma ficção que se mistura a ele, o masturbe, e o esperma produzido nessa relação seja chamado de Arte.



[1] As entrevistas da Paris Review, vol. 1/ tradução Christian Schwartz, Sérgio Alcides. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[2] Idem nota 1.