O mais recente romance do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa tem dividido opiniões de críticos e leitores. Lançado poucas semanas depois do anúncio do prêmio, em 2010, todos os olhares se voltaram para O sonho do celta. O livro, dividido em três partes – e um epílogo –, conta a história do irlandês Roger Casement, que após servir à Inglaterra na África e na Amazônia na passagem do séc. XIX para o séc. XX, participa da luta da independência da Irlanda. É preso e acusado de traição pela Inglaterra em 1911.
Vargas Llosa fez uma vasta pesquisa sobre esse personagem e visitou o Congo, a Amazônia e a Irlanda (os três capítulos em que o livro é dividido tratam de cada um desses lugares e têm esses nomes). A história parte, então, de um Casement encarcerado e esperando perdão pelo crime de traição ao governo inglês para voltar, através de suas reminiscências, àqueles lugares e anos que o trouxeram a estar ali naquela situação extrema. A mudança de convicções quanto à colonização européia na África, ao presenciar os horrores no Congo belga, a denúncia desses horrores na Europa e a defesa dos direitos humanos, a ida à Amazônia para investigar e relatar abusos sobre a população indígena, e, finalmente, a tomada de consciência de que a sua Irlanda também estava sob os grilhões dos ingleses e precisava se libertar.
Daí temos uma ideia da complexidade e da riqueza desse personagem, que, pelos lugares em que esteve e na época em que esteve, poderia resultar em um romance histórico cheio de aventura e, claro, infortúnio. Mas, aí pesa a escolha do autor – algo que cabe somente a ele –, o romance é, em sua forma, um relato histórico (mesmo que em muitos momentos tenha ocorrido invenção, como revelou o próprio Vargas Llosa) e não propriamente uma narrativa histórica. E dessa escolha do autor surgiram críticas quanto à qualidade do romance.
Entrementes, devemos admitir, sendo sua a opção, conforme ele mesmo revelou, em ter feito em O sonho do celta “um tipo de escrita que se assemelha às crônicas históricas, aos informes e aos diários pessoais (...) usando um simulacro desses gêneros” para aproximar o livro “do tempo em que o romance transcorre” [em entrevista ao jornal O Globo, 14.05], o resultado não merece (nem cabe) ser considerado pobre em estilo, como já foi dito, porque não podemos olhar para aquilo que uma obra é em busca daquilo que ela não é. Não estamos diante de um romance de aventura, e nem estamos diante, agora, das obras anteriores de Vargas Llosa. O autor, inclusive, revela que o que ele fez em O sonho do celta ele não fizera em seus romances anteriores.
Como “simulacro de gêneros” – crônica, informe, relato histórico – o livro é bem sucedido. Uma espécie de dossiê Casement romanceado, resultado de uma pesquisa profunda e esmero do escritor, que, tendo feito sua escolha, nos apresenta um personagem que merece o nosso conhecimento, e, para que não se interprete que temos aqui um Vargas Llosa irreconhecível, ele nos coloca em questão os abusos cometidos pelo poder, nos revela suas engrenagens, denuncia seu caráter de desumanização e, por fim, nos adverte que esse passado terrível ainda é, de muitas maneiras, o nosso presente, seja no Congo ou na Amazônia atuais, como também em muitos outros lugares do mundo.