11 de jun. de 2011

3 Colaboradores n'O BULE

Masterpiece

Por Antônio LaCarne

Regojizo ao inferno, assim eles propõem um assunto. Cansados e inertes sobre bancos rudimentares. As palmeiras, a cor cinza ou avermelhada da terra atua como testemunha: inanimada por não ter voz, apenas espaço plano onde os trabalhadores pisam numa jornada imprevista. Samambaias são enfileiradas num espaço de três metros. Pedestres oriundos do cansaço de um dia podem – caso tenham coragem – esticar o corpo e esperar o sono, lânguidos, estátuas mortas em poses horizontais. Eis que nenhum pintor, desenhista ou artista da observação é capaz de retratar na tela em branco a imagem de tal pessoa a dormir. Com qual traço lançar o primeiro esboço da mão peluda do homem? Pois um homem de meia idade é o primeiro a ignorar quem passa. Ele parece hipnotizado, lentamente ele senta, deita e fecha os olhos. Hoje o principal acontecimento no mundo é uma tarde de sombras e árvores centenárias num parque da América do Sul. Semblantes incógnitos de mulheres com seus f ilhos, casais de namorados, gatos abandonados. É o momento em que uma mão hesita ao escrever uma palavra e paira no ar. São segundos esparsos onde ninguém nasce ou morre. Todos perdem a consciência de suas atitudes e trivialidades – unidos no instante em que a vida toma fôlego.

Antônio LaCarne escreve poemas, contos, fragmentos & diários. Tem dois livros de prosa poética publicados: Elefante-Rei: Poemas B e Avenida dos Gestos. Assina os blogs http://oimpenetravel.blogspot.com/ e http://antoniolacarne.wordpress.com/


Soleira

Por Renato Essenfelder

mas tomou coragem e empurrou a porta contra todas as próprias expectativas.

o rangido era exatamente como imaginara, silvo seco cheio de ranhuras que se lhe apegavam à medula, preenchendo os poros que o desejo diligentemente escavara por vinte anos. [desejo?], o bicho que corroera cecília por toda a infância, por toda a adolescência, misturando-se ao medo, alimentado-se à sombra do dever e do zelar, da ordem e dos costumes.

[Não era a minha casa.] subitamente: cólica lancinante, uma lasca de madeira na barriga. encostou por descuido o ventre à porta, e agora o sangue escorria num filete... ou era de dentro que a farpa emergia? A porta: bem menos pesada do que sua cor e porte haviam dado a imaginar. desgastada, roída por dentro, quase certo que haja cupins. tem nojo; emergem dos vãos com suas carcaças finas.

eu estava te esperando, uma voz dentro da cabeça [familiar?]. a casa gargalha como quem triste [quase] desiste. sopro rouco reverberando nas estantes empoeiradas e vazias, na mesa inclinada, nos tapetes devorados pelos anos, como se fosse desabar, mas resiste. a sensação inquietante de que o relógio parado batia. Penso em Alice [no País das Maravilhas] e sou alice por um segundo, mas

vislumbrou enfim a sala antiga da casa antiga, tão antiga que já sem proprietário, sem número nem nome de rua, sem rua à verdade: à margem de todos os caminhos da vida. será que errei de porta? a farpa, onde está?

sumira. era o seu sonho de menina. a casa baldia. bruxas e princesas. uma lareira sempre acesa onde a inocência. queima.

diante da lareira: lugar perfeito para toda a família. tomara um grande fôlego de coragem no seu terninho escuro. ninguém ali, mas ainda assim vozes abafadas. pensou em trazer lenha, e lenha havia sob o braço esquerdo. então só precisava do gesto. talvez mesmo, mas. seria uma boa ideia reacender a lareira? ou deveria queimar TUDO?

um ruído indigesto a distraiu para fora daquele mundo.

Encena e: outra vez quase; quase passou da soleira.

Foi por um gesto, apenas.

Renato Essenfelder é jornalista e professor universitário em São Paulo. Escreve em http://www.contosdefarpas.com/


Acerto de contas

Por Leonardo Colucci

UM...

...reveillon de 74 fogos coloridos sensação de embriaguez minha mãe me olha com ternura e compaixão todos se aproximam de mim uma massa sonora causa desequilíbrio carros passam em alta velocidade fluxo intenso muito barulho estou no canteiro que divide as pistas voltar implica no mesmo risco de ir adiante totalmente desprotegido estou nu cansado sinto vontade de dormir mas tenho medo uma buzina mais alongada um carro vermelho se destaca entre todos os outros da janela do banco traseiro minha irmã me chama Beto Beto Beto o grito vai ficando cada vez mais forte como se uma multidão tivesse aderido a ele

DOIS...

meu corpo está pesado, inerte, tenho frio e os cabelos molhados, tome cuidado meu filho, Beto, Beto, Beto, acorda Beto, está na hora de ir para a escola, já estamos atrasados, levanta agora ou não vai dar tempo, tá bom, tá bom, eu já ouvi, me deixa ficar só mais um pouco, bom, tu que sabes, se não for agora, não poderei te esperar, espera pai, eu vou, espera só um minuto, tá maluco, não temos um minuto, tem de ser agora!

TRÊS...

O leito é rígido, as luzes já estão acesas, muitos me chamam, tenho mania de esticar o corpo quando acordo, mas ainda o sinto pesado, minhas mãos estão presas, meus dedos parecem amarrados, a cama imensa, não reconheço meu quarto, à frente dos meus olhos uma multidão me espera, mas não são os mesmos rostos de antes, o som começa a ficar claro, estão todos eufóricos, vejo um homem de camisa branca, expressão severa, como que me dando ordens, não é mais meu pai quem está ali em pé me aguardando, as luzes fortes confundem, deitado sobre minha face direita, sinto o contato áspero e duro do solo, diferente dos lençóis macios a que estou acostumado, meu peito apertado contra o chão e meu queixo dolorido denunciam a queda, trago uma das mãos até a altura dos olhos e vejo surgir um balão vermelho, brilhante à minha frente, entendo que devo me levantar.

QUATRO...

Ainda de bruços, junto uma mão em cada lado do corpo, braços flexionados para me colocar em posição vertical, punhos cerrados, como não poderia deixar de ser. Sinto o gosto morno do sangue na boca. Não era pra menos. A cabeça ainda gira e o corpo responde lentamente. Assim não vai dar. Meus braços ainda estão fracos. Preciso tentar de outra forma. Ao menos meus pensamentos já estão organizados, preciso apressar-me. Apoiado sobre os cotovelos, recolho uma das pernas e firmo o joelho direito no chão. Repito o mesmo movimento com a outra. Estico os braços. Punhos novamente contra o chão e estou agora com base mais firme. Ouço chamarem o meu nome novamente. Desta vez identifico as vozes mais próximas. A respiração um pouco ofegante recomenda prudência. Mas realmente não tenho muito tempo.

CINCO...

Não estou no melhor de minhas condições. Talvez pudesse parar por aqui. Minha bolsa está garantida. Ainda que eu não vença, o prêmio será pago. Está no contrato. Basta não me levantar que minha derrota terá sido convincente, honrosa até. O cara pega pesado e eu já não tenho os mesmos reflexos do primeiro assalto. Em outros tempos, quando ainda era um aprendiz, o instinto de preservação ou sobrevivência teria me colocado em pé antes que eu pudesse raciocinar. Agora, a consciência me permite decidir... Foda-se! Eu vinha bem na luta e nem sei como foi que ele me acertou. Escolhi esta vida e não tenho medo do destino. “Vamos lá, Beto. É hora de voltar!” — desta vez quem fala sou eu mesmo.

SEIS...

Encho os pulmões de ar e, firmando o pé esquerdo à frente, me afasto do solo onde repousei por pouco mais de cinco segundos. Com o auxílio das cordas — que alcanço com a luva direita — ponho-me novamente ereto. Ainda recobrando os sentidos, tento agir com naturalidade. Certa vez fui abordado por policiais depois de ter derrubado uma garrafa de whisky junto com um amigo. E me vi na mesma situação; tendo que simular equilíbrio. E todos sabem como é difícil passar credibilidade nestas ocasiões. O homem careca de camisa branca aproxima-se para se certificar-se da minha condição. Preciso demonstrar segurança. Sei que, como os policiais da noite, ele não será muito tolerante.

SETE...

Agito os braços e a cabeça. Fico saltitando para acelerar a recuperação. O juiz me olha nos olhos. No canto oposto, meu oponente aguarda apreensivo. Observo seus movimentos. Ele parece íntegro. Eu ainda me sinto um pouco instável. Sei que ele quer me intimidar. Assim como eu tento me convencer de que estou recuperado, ele empenha-se em sugerir o contrário. Parece confiante. “Bata mais forte da próxima vez” — respondo-lhe com o olhar.

OITO...

“Oito? Como assim, oito? Interrompa esta contagem, seu estúpido!” — penso em dizer, mas na verdade falo: “Estou bem! Estou bem! Deixe-me continuar na luta!”. Um instante de incerteza. “Não conte o nove” — mentalizo. Existe no boxe um mito que diz que todos os nove viram dez. E aí, meu amigo, já era. Isso é verdade. Não recordo de nenhuma luta em que a contagem tenha sido interrompida depois de alcançado o penúltimo número. Eu sou capaz de apostar inclusive que o intervalo entre nono e o décimo é bem menor do que os outros. Por isso estamos no momento crucial. Então, repito: “Deixe-me continuar na luta!”. O árbitro desapontado convence-se de que estou apto e ordena que continuemos.

Meu adversário, plantado no centro do ringue, aguarda meus movimentos. Rodando em torno dele, procuro voltar para a luta. Soa o gongo e eu me recolho para o meu canto, certo de que terei mais dois assaltos para acertar as contas.

Leonardo Colucci nasceu no RS e está no mundo desde 71. Tem trabalhos publicados em antologias de contos e mini-contos. Mantém o blog http://portamalas.wordpress.com/ onde fala sobre literatura. Escreve madrugada adentro ouvindo blues e bebendo vinho até seus personagens se recolherem para dormir.