por Marcia Barbieri
Meu rosto tem linhas duras e assimétricas. Eu - carne de pescoço. As arcadas são grandes relinchos de cavalo. Uma pintura cubista em mão de criança. De todas as anomalias, a feiúra é a única imperdoável. Ele costumava dizer enquanto enfiava os dedos no meio das minhas pernas e afastava minha calcinha.
Estou te fazendo um favor, era o que ele dizia nas entrelinhas viciadas dos seus dentes. Era nojento e eu cedia, eu gostava.
Um favor, é só um favor, não se acostume.
Uma década depois você se tornou uma metáfora cansada, catacrese, teu pau músculo rançoso na minha boca. Uma casa de espelhos. Quebro todos eles. Recolho os cacos. Enfio na sola dos meus pés. Acupuntura. Vejo o sangue escorrendo.
Escoliose. Aberração. Minhas vértebras sinuosas, comprimidas, hérnia de disco, a serpente castigada, o ventre abaulado cravando estrias no chão. O útero velando fetos suicidas. Minha cabeça dói, em todos os tendões, campos minados. Trago no inconsciente a morte de 10 mil soldados. Sonhos de Kurosawa. Fumo um cigarro sozinha no escuro. Não alivia a dor, mas dissimula minha mágoa.
Um metro e sessenta, trinta e nove quilos. Imagem borrada. Todos os olhos se voltam para os meus ossos. Um cão saliva. Observo meu corpo nos vidros dos carros. Gorda. Meninos rindo. Morfina naufragando veias.
Passo os dedos em torno do umbigo. Portas, vãos e umbrais. Conto as fissuras. Só, advérbio da solidão. Côncavo. O nascimento traz consigo a amputação da morte. Os dias são próteses mal acabadas. Furo. Toda imundície se acumula ali. Arredio. A vida é um pouco dessa matéria escura. Nenhuma grande decisão foi tomada sem que antes um revólver ameaçasse explodir minhas tripas. As vísceras são feitas de merda e merda é sólida, é pulsação – comentava o filósofo que frequentava o boteco da esquina enquanto comia uma buchada de bode.
Ainda consigo enxergar os lábios roxos do meu tio sussurrando, é só um favor, é só um favor, não se acostume.
Na calçada em frente, uma figueira branca racha o asfalto, as raízes entopem o esgoto. Ninguém vê. O homem não fareja a própria bosta.