5 de mai. de 2011

Temporal

Por André Giusti

Colocou as duas bolsas de viagem no porta-malas do golzinho mil. Iriam nele até Buenos Aires, esta semana marcariam as férias juntos. Bateu a tampa, rodopiou entre os dedos a cordinha do chaveiro, e em apenas uma passada subiu os três degraus que levavam à varanda do bangalô. Mais dois passos e chegou à porta de madeira grossa, arranjada n’alguma demolição de fazenda. Aberta, ela recebia o sol das quatro da tarde.

O clarão começava pelo piso de ardósia, subia pela mesinha de cabeceira, galgava até metade da cama e se tornava sombra a partir daí, não chegava até o espelho em que Lúcia se penteava. Mas a claridade ali era mais que suficiente, destacava até mesmo a penugem branca que campeava coxas, braços e costas de Lúcia. Era de se admirar sua magreza de pernas torneadas e musculatura forte, a nádega redonda e firme, de tamanho pouco provável para uma mulher assim esguia.

Do ponto em que estava, junto à porta, via-se o mamilo rosado do seio direito buscando o teto. Ela saíra do chuveiro, vestira apenas a calcinha e corria com o pente por aqueles grossos fios clareados com tintura, sem nem perceber janela e porta abertas. Ele espiou a alameda gramada que levava ao bagalô, o último da pousada. Ninguém passaria por ali, descendo ou subindo o sopé do pequeno monte logo adiante, para roubar a exclusividade daquela visão de delícia e poesia.

Quando olhou de novo para Lúcia, teve a impressão de que suas formas se encorparam ainda mais após as horas seguidas de cópula intensa no fim-de-semana. E como se não fossem suficientes todos os momentos de conjunção que tiveram em todos os lugares possíveis naquele paraíso de veraneio, como se seu corpo não estivesse exaurido pelo esforço quase initerrupto do prazer, partiu outra vez em andar lúbrico na direção de Lúcia.

Tocou-a nos ombros, e deslizou dedos dobrados em suas costas. Com ela, vinha aperfeiçoando ser delicado, mas não apenas isso. Futuro longo que continuaria bem depois de Buenos Aires. Daqui a dois anos, terminada a pós, um apartamento pros dois, ser pai talvez fosse um de seus talentos. Já tinham quase trinta e desde que conhecera Lúcia, cinco, seis semanas antes, essas coisas maduras, da idade em que pensamos ser maduros, vinham ganhando território em seus pensamentos.

Os dedos prosseguiram em linha reta para baixo, com a intenção inabalável de despi-la da única peça de roupa que vestia, e ele agora duvidava se por displicência ou provocação. Em poucos minutos, apressados pela hora que caminhava em direção ao fim da diária da pousada, possuiu-a para se despedir do fim-de-semana, como a tarde já se despedia do domingo, e sequer foi necessária a cama.

Desgrudou de Lúcia e veio de costas, devagar e um tanto desequilibrado nas próprias pernas, bambas pelos movimentos feitos em pé. Encostou em um móvel qualquer que lhe pareceu sem serventia. Queria normalizar a respiração acelerada pelo esforço do ato, que exigira muito por que havia sido um esforço extra naquela maratona de atletismo sexual a que os dois se atiraram de sexta-feira à noite até ali.

Tentou caminhar até a calça jeans espalhada à frente, mas ainda não recuperara o equilíbrio de todo. Voltou ao móvel, ficou olhando Lúcia catar a peça íntima e correr para o banheiro, as pernas escorrendo, alguns pingos já pelo caminho. Ouviu o barulho da água da duchinha de mão caindo na privada.

Recuperado, vestiu a calça e sacudiu a camiseta amarrotada dos minutos em que esperou amassada no chão.

Lúcia saiu do banheiro, outra vez só de calcinha. Sorria feliz, parecia-lhe completa, e a luz agora mais fraca da tarde ainda encontrou força para iluminar seu rosto de mulher realizada.

“Vocês não são fáceis”, ela disse, sem imaginar que deixara escapar algo que poderia não ter sido dito, algo desnecessário, embora em seu raciocínio nada pudesse ser mais banal que esse comentário imbecil, vazio de qualquer significado real. Inocente, ela jamais se daria conta de que um tonel de óleo com um pequeno furo na borda tombara na beirada do riacho límpido, e que dali, gota a gota, sairia o vazamento que para sempre contaminaria as águas.

Ele, que calçava os tênis, parou de repente e ainda conseguiu flagrar a malícia que ela acrescentara ao sorriso feliz dos segundos anteriores. Malícia de mulher vivida, rodada, e uma voz dentro dele sussurrou, estranha voz que não era a dele, nem de Lúcia, nem de ninguém. Voz sem som, apenas fria e cruel voz. E ele a tomou por certeza de uma revelação.

Como assim, vocês? Mas não disse nada, ficou com a pergunta na cabeça, muito embora se Lúcia o fitasse certamente a leria em uns olhos que endureceram de uma hora para a outra. Como assim, vocês? E da cabeça a pergunta foi parar no estômago, tomou o fígado e a mais escondida das tripas, como carne podre e envenenada que houvesse comido sem sentir o cheiro nem o sabor.

Nos mesmos olhos, de repente, já não morava mais a ternura dos últimos dois dias, das cinco ou seis semanas, a mesma que meia hora antes juraria sentir até o fim da vida. De lá, expulsou-a a sombra cinza da desconfiança.

Quantos homens, Lúcia? E em quantos bangalôs ao longo da vida? Soubera de dois namorados, mas aquele “vocês não são fáceis” não carregava somente um passado com tão pouca gente. “Com tão poucos machos, amantes, você quer dizer”, e na balbúrdia de sua cabeça, a voz estranha que não era voz fazia coro com a sombra cinza da desconfiança e ofendia Lúcia com palavrões calados, imaginava situações.

Aquela desinibição toda em locais tidos como impróprios, aquele desempenho sexual, quanta quilometragem há nisso! E agora ele entendia o desfile só de calcinha com o bangalô escancarado para quem quisesse ver. Quantos motéis pela cidade, Lúcia? Saunas, piscinas, automóveis!

Uma trovoada fez tremer a janela, um raio caiu no pequeno monte e se partiu em seus ouvidos. Nem notara que a tempestade chegara em poucos minutos, o mesmo tempo que um cara pode levar para não ter mais certeza de nada na vida.

Imensa nuvem carregada antecipou a escuridão da tarde, e desesperadas as andorinhas fugiam procurando abrigo. Tolamente comparou-se a elas. Sentia o corpo enrijecido, e um não sei o quê gelado anestesiando tudo lá dentro. Estômago embolado, sentia enjoo, quase nojo daquele cheiro de sexo resistindo ao vendaval. Sim, não somos fáceis, né, Lúcia? Todos nós, dezenas.

Vamos? Ela perguntou tocando-lhe o braço. Vestida, de cabelos molhados, nem assim ocultava a devassidão.

Que foi? Tá tudo bem? Espantada, quis saber quando reparou finalmente que dos olhos dele surgiam as trevas da tarde.

Lúcia…ameaçou dizer algo que nem sabia direito o que era. Calou.

O aguaceiro desabou levando pra longe Buenos Aires, apartamento, o futuro.

André Giusti - Escritor e jornalista, autor de A liberdade é amarela e conversível e A solidão do livro Emprestado, ambos da Coleção Rocinante, da editora 7Letras. É carioca e mora em Brasília. www.andregiusti.com.br