20 de mai. de 2011

Especial Poesia n'O BULE

Por Munique Duarte

Romance de pomar

Sua pele vermelha me convida
Seu sabor único
De abraço apertado
Que espalha na boca
Sua cor de puro rubi
Te acolhi
Antes que fosse tarde demais
Antes dos besouros esfomeados
Antes da tempestade
Antes das mãos estranhas
Que não te merecem
Eu te quero
Com este gosto de nada e tudo
Com coroa e cara
Ao ponto
Ao meio-dia
Aqui
Em meio a folhagens cáquis
Caqui.

Um abismo por vez

Grito seco no emaranhado de sonhos
Gesto obscuro no desfazer da madrugada
Desejo insano no vazio do horizonte
Ancorado no tanto fez e no tanto faz
Disfarçado de maio
Encoberto de junho
Arregalando os olhos ao ver
que o último setembro não volta mais
que caimos em abismo somente uma vez,
um abismo por vez
A sombra engolirá feriados santos
Penas de ganso
Não abafarão gritos de anos passados
De 50 chegados
Rugas estaladas
Arrependimentos breves, breves...
Glórias aos tempos idos
Misérias aos tempos chegados.

Cemitério provisório

Enterrou todas as fitas cor-de-rosa
Enterrou as agulhas de tricô
Enterrou bem fundo meia dúzia de retratos
E também seu pequeno perfume favorito
Não esqueceria a aliança de ouro
Tampouco seu lenço, presente da avó
Enterrou todos os retalhos da última costura
Todos os alfinetes de cabeça dourada
O relógio sueco tão fino
Duas fronhas bordadas
Quatro livros de cabeceira
Duas sandálias importadas
Enterrou mais e mais lembranças
De décadas vividas
Mais e mais artigos, propósitos
Encerrou com algumas lágrimas pingadas
Tapou com a terra, vigor em pazadas
Tudo
fundo, fundo, muito fundo
Para depois poder se lembrar de tudo
Os soldados já estavam chegando.

Caco de vidro

Pode deixar
Eu sei a hora que eu volto
Quando der o momento que achar certo
Chegarei em casa às tantas em ponto
Nem
um minuto a mais ou a menos
Trarei um coração rasgado
Com outros restos perdidos
A pele marcada pelos cacos de vidro
Cada ideia perdida em um trago
Cada ideia morta e velada sem prantos
Porque o mundo acabou
Sem você me tocando e me rasgando
Sussurrando, apenas sussurrando
Marcando o que vê com pontas finas
de caco de vidro
Marcando minha boca e minha alma
Para restar lembranças ternas
Caco de vidro etéreo
Do seu eterno sussurrar.

Munique Duarte - Nascida e vivendo (sempre!) em Santos Dumont-MG. É jornalista responsável das publicações dos sindicatos dos carteiros e dos auxiliares de ensino privado de Juiz de Fora. Formada pela UFJF, musicista, trilingue, viajante cosmopolita, mineiríssima de tantos causos. À espera de escrever um livro e ter um filho. (Um dia desses, planta uma árvore!). Bloga em http://textosimperdoaveis.blogspot.com. Admiradora da vida e de Dalton Trevisan.

Por Bárbara Lia, do livro inédito A flor dentro da árvore

Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos

Não nasci para resfriar o mundo

Neste lerdo cortejo de omissões

Estas palavras interditas

Suspensas

Não vim quebrar as pernas do sol

Silenciar cada bemol

Não vim para arrebentar o anzol

Do velho de Hemingway

Sou mar e trovão no coração

Nasci para amar sem lastro

Para dançar no pátio

It is my way

Doce como o massacre de sóis

Oito canhões na praça de guerra
Apontam para o peixe
Que traz a paz nas guelras

Quatro gaivotas suicidas
Lambem o babado azulado
Do triste mar-flamenco

Lembro um filme de Babenco:

Ana e o vôo
Mariposas no quarto lúgubre
Suas mãos em concha
A
esmagar a eternidade insalubre

A lentidão das palavras do arcanjo ao acordá-la

O sagrado despe as ilusões

e abraça as árvores mortas

Suas folhas azul esmaecido

qual manto da Virgem de Cambrai

Os ossos das árvores adoeceram

e elas morreram – azuis -

Antes que tornassem brancos

os seus cabelos

Sinal cifrado para enovelar o divino

Trinta e dois ventos

da rosa dos ventos

Vinte e um gramas

do peso da alma

Oito países

a comandar a Terra

UM Deus louco

pelas ruas bombardeadas

O pedigree do mel não diz nada a uma abelha

O rancor dos homens

Contaminou as flores

As abelhas

Morreram de cólera

Adocicada

Último zumbido

Acordou o Sol

Em cadência afinada

Qual canção do Vangelis

Nota – as poesias do livro ‘A FLOR DENTRO DA ÁRVORE’ é um diálogo com Emily Dickinson, cada poesia tem como título um verso da poeta Emily – Ela, árvore; Eu, flor

Sépia

Minha luxúria é sépia

Habita estúdios de 1930

Estouro de purpurina

A cada flash do tesão

Minha luxúria - Polaróide antiga

Imprime postais esmaecidos

Sorrisos de conta-gotas

Minha luxúria lacrou

O livro do amor

- utopia dos desgarrados –

(Adeus suspiros de Monalisa

Carícias de carpideira

Despedidas na soleira)

Minha luxúria é parto à revelia

Quando chegas com fórceps

Quando chegas com toques

Quando tocas meu clitóris

Quando roças meus mamilos

Quando afogas o amor

No mar dos improváveis

E ressuscitas O DESEJO

Retirando-me das entranhas de Eros

Pra me batizar com teu sêmen

Abençoado sêmen

Amém

Bárbara Lia nasceu em Assaí, norte do Paraná, foi por duas vezes finalista do Prêmio Sesc de Literatura: em 2004 com o romance Cereja & Blues (inédito em livro) e, em 2005, com o romance Solidão Calcinada (publicado em 2008 pela Secretária de Estado da Cultura). Terceira Colocada no Concurso de Poesias Helena Kolody – 2006, Menção Honrosa no mesmo concurso em 2007. Menção Honrosa no Conc. Nacional de Contos Newton Sampaio/2009. Premiada no Concurso de Contos Grotescos – Prêmio Edgar Alan Poe/2009 e PrêmioUfes Literatura/2009. Entre outros importantes poetas da atualidade, faz parte do livro de ensaios O que é poesia? (Ed. Confraria do Vento), organizada por Edson Cruz.

Por Reinaldo Ramos

Blackbird

Há uma triste garoa

há um réquiem de muitos silêncios

há uma homenagem solene

para uma revoada de melros mortos

Há alguns suicídios por tédio

há a gênese de novos tumores

há escolha para síndicos de prédios

para uma revoada de melros mortos

Há uma dança macabra

há um cortejo fúnebre

há amigos de muitas solidões

para uma revoada de melros mortos

Há um chorar condoído

há rumores apocalípticos

há adágios para o nascer do dia

para uma revoada de melros mortos

Há glaciares se derretendo

há muitos olhares incrédulos

há destinos se precipitando

para uma revoada de melros mortos

Há uma bandeira à meio-mastro

há transatlânticos ancorados no porto

há rancores multiplicados entre nuvens

para uma revoada de melros mortos

Há canções para o morrer da noite

há tremores de mais asas débeis

há impenetráveis cegueiras vivas

para uma revoada de melros mortos.

Poema da Felicidade Compulsória

Ela é dessas piromaníacas

ateia fogo

ao próprio corpo

pra ter um pouco

de calor

e de luz

Vai dançando nos intervalos

seus pequenos

suicídios

e infernos

em suas próprias

cinzas calcinadas

Do que lhe resta

meia arcada dentária

basta

a faculdade de sorrir

não pode passar em branco.

Deveres Humanos

Efetuar a engenharia reversa dos dicionários

repatriar os primeiros sentidos de mundos impossíveis

sepultar as sílabas decompostas

dos tempos mortos nos abecedários

Promover a desordem analfabética dos conceitos

fazer das palavras etiquetas sem cola

para pregar nas coisas paradas e móveis

por reverência a todas as formas de queda.

Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, em Agosto de 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública, tem inteligência mediana, pertence à classe média suburbana e é, seguramente, alguém bem pior que você. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” em 2008 com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis. Seu endereço de email é reinosdafilosofia@hotmail.com e publica suas coisas no blog http://fronstispicioconflagrado.blogspot.com/ (com erro de digitação mesmo).