Por Munique Duarte
Romance de pomar
Sua pele vermelha me convida
Seu sabor único
De abraço apertado
Que espalha na boca
Sua cor de puro rubi
Te acolhi
Antes que fosse tarde demais
Antes dos besouros esfomeados
Antes da tempestade
Antes das mãos estranhas
Que não te merecem
Eu te quero
Com este gosto de nada e tudo
Com coroa e cara
Ao ponto
Ao meio-dia
Aqui
Em meio a folhagens cáquis
Caqui.
Um abismo por vez
Grito seco no emaranhado de sonhos
Gesto obscuro no desfazer da madrugada
Desejo insano no vazio do horizonte
Ancorado no tanto fez e no tanto faz
Disfarçado de maio
Encoberto de junho
Arregalando os olhos ao ver
que o último setembro não volta mais
que caimos em abismo somente uma vez,
um abismo por vez
A sombra engolirá feriados santos
Penas de ganso
Não abafarão gritos de anos passados
De 50 chegados
Rugas estaladas
Arrependimentos breves, breves...
Glórias aos tempos idos
Misérias aos tempos chegados.
Cemitério provisório
Enterrou todas as fitas cor-de-rosa
Enterrou as agulhas de tricô
Enterrou bem fundo meia dúzia de retratos
E também seu pequeno perfume favorito
Não esqueceria a aliança de ouro
Tampouco seu lenço, presente da avó
Enterrou todos os retalhos da última costura
Todos os alfinetes de cabeça dourada
O relógio sueco tão fino
Duas fronhas bordadas
Quatro livros de cabeceira
Duas sandálias importadas
Enterrou mais e mais lembranças
De décadas vividas
Mais e mais artigos, propósitos
Encerrou com algumas lágrimas pingadas
Tapou com a terra, vigor
Tudo
Para depois poder se lembrar de tudo
Os soldados já estavam chegando.
Caco de vidro
Pode deixar
Eu sei a hora que eu volto
Quando der o momento que achar certo
Chegarei em casa às tantas
Nem
Trarei um coração rasgado
Com outros restos perdidos
A pele marcada pelos cacos de vidro
Cada ideia perdida em um trago
Cada ideia morta e velada sem prantos
Porque o mundo acabou
Sem você me tocando e me rasgando
Sussurrando, apenas sussurrando
Marcando o que vê com pontas finas
de caco de vidro
Marcando minha boca e minha alma
Para restar lembranças ternas
Caco de vidro etéreo
Do seu eterno sussurrar.
Munique Duarte - Nascida e vivendo (sempre!)
Por Bárbara Lia, do livro inédito A flor dentro da árvore
Até que os serafins acenem com seus chapéus brancos
Não nasci para resfriar o mundo
Neste lerdo cortejo de omissões
Estas palavras interditas
Suspensas
Não vim quebrar as pernas do sol
Silenciar cada bemol
Não vim para arrebentar o anzol
Do velho de Hemingway
Sou mar e trovão no coração
Nasci para amar sem lastro
Para dançar no pátio
It is my way
Doce
Oito canhões na praça de guerra
Apontam para o peixe
Que traz a paz nas guelras
Quatro gaivotas suicidas
Lambem o babado azulado
Do triste mar-flamenco
Lembro um filme de Babenco:
Ana e o vôo
Mariposas no quarto lúgubre
Suas mãos
A
A lentidão das palavras do arcanjo ao acordá-la
O sagrado despe as ilusões
e abraça as árvores mortas
Suas folhas azul esmaecido
qual manto da Virgem de Cambrai
Os ossos das árvores adoeceram
e elas morreram – azuis -
Antes que tornassem brancos
os seus cabelos
Sinal cifrado para enovelar o divino
Trinta e dois ventos
da rosa dos ventos
Vinte e um gramas
do peso da alma
Oito países
a comandar a Terra
UM Deus louco
pelas ruas bombardeadas
O pedigree do mel não diz nada a uma abelha
O rancor dos homens
Contaminou as flores
As abelhas
Morreram de cólera
Adocicada
Último zumbido
Acordou o Sol
Em cadência afinada
Qual canção do Vangelis
Nota – as poesias do livro ‘A FLOR DENTRO DA ÁRVORE’ é um diálogo com Emily Dickinson, cada poesia tem como título um verso da poeta Emily – Ela, árvore; Eu, flor
Sépia
Minha luxúria é sépia
Habita estúdios de 1930
Estouro de purpurina
A cada flash do tesão
Minha luxúria - Polaróide antiga
Imprime postais esmaecidos
Sorrisos de conta-gotas
Minha luxúria lacrou
O livro do amor
- utopia dos desgarrados –
(Adeus suspiros de Monalisa
Carícias de carpideira
Despedidas na soleira)
Minha luxúria é parto à revelia
Quando chegas com fórceps
Quando chegas com toques
Quando tocas meu clitóris
Quando roças meus mamilos
Quando afogas o amor
No mar dos improváveis
E ressuscitas O DESEJO
Retirando-me das entranhas de Eros
Pra me batizar com teu sêmen
Abençoado sêmen
Amém
Bárbara Lia nasceu em Assaí, norte do Paraná, foi por duas vezes finalista do Prêmio Sesc de Literatura: em 2004 com o romance Cereja & Blues (inédito em livro) e, em 2005, com o romance Solidão Calcinada (publicado em 2008 pela Secretária de Estado da Cultura). Terceira Colocada no Concurso de Poesias Helena Kolody – 2006, Menção Honrosa no mesmo concurso em 2007. Menção Honrosa no Conc. Nacional de Contos Newton Sampaio/2009. Premiada no Concurso de Contos Grotescos – Prêmio Edgar Alan Poe/2009 e PrêmioUfes Literatura/2009. Entre outros importantes poetas da atualidade, faz parte do livro de ensaios O que é poesia? (Ed. Confraria do Vento), organizada por Edson Cruz.
Por Reinaldo Ramos
Blackbird
Há uma triste garoa
há um réquiem de muitos silêncios
há uma homenagem solene
para uma revoada de melros mortos
Há alguns suicídios por tédio
há a gênese de novos tumores
há escolha para síndicos de prédios
para uma revoada de melros mortos
Há uma dança macabra
há um cortejo fúnebre
há amigos de muitas solidões
para uma revoada de melros mortos
Há um chorar condoído
há rumores apocalípticos
há adágios para o nascer do dia
para uma revoada de melros mortos
Há glaciares se derretendo
há muitos olhares incrédulos
há destinos se precipitando
para uma revoada de melros mortos
Há uma bandeira à meio-mastro
há transatlânticos ancorados no porto
há rancores multiplicados entre nuvens
para uma revoada de melros mortos
Há canções para o morrer da noite
há tremores de mais asas débeis
há impenetráveis cegueiras vivas
para uma revoada de melros mortos.
Poema da Felicidade Compulsória
Ela é dessas piromaníacas
ateia fogo
ao próprio corpo
pra ter um pouco
de calor
e de luz
Vai dançando nos intervalos
seus pequenos
suicídios
e infernos
em suas próprias
cinzas calcinadas
Do que lhe resta
meia arcada dentária
basta
a faculdade de sorrir
não pode passar em branco.
Deveres Humanos
Efetuar a engenharia reversa dos dicionários
repatriar os primeiros sentidos de mundos impossíveis
sepultar as sílabas decompostas
dos tempos mortos nos abecedários
Promover a desordem analfabética dos conceitos
fazer das palavras etiquetas sem cola
para pregar nas coisas paradas e móveis
por reverência a todas as formas de queda.
Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, em Agosto de 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública, tem inteligência mediana, pertence à classe média suburbana e é, seguramente, alguém bem pior que você. Já estudou Cinema, fez mestrado