12 de mar. de 2011

Os olhos de Deus

Por Geraldo Lima
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Se o primeiro homem tivesse tido o poder de permanecer reto tanto quanto o de tombar, se tivesse na posse de si mesmo e de uma natureza ainda não viciada, como poderia ter acontecido que, possuindo saber e prudência, tenha caído?
(Spinoza)
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A porta entreaberta, uma frincha só, mas é o bastante para que a imaginação flua intensa. Pode sentir a respiração se descontrolando, arfante, e dentro do peito o coração aos pulos. A garganta seca de repente: cão hidrófobo.

É possível retornar dali mesmo, sem transpor o que ele chama agora de umbrais do inferno — ou do paraíso? Inferno e paraíso debatendo-se no seu íntimo: delícias — e tormentos logo depois; prazer — e a dor em seguida. Não, é impossível retroceder a partir deste ponto: aí está a ideia fixa, o desejo, a porta entreaberta arrastando-o para o interior do redemoinho. Se fizer meia-volta, carregará, até o último dia de vida (e que pode já estar muito próximo), uma sensação enorme de renúncia, de desperdício, de fraqueza diante do grandioso.

Cão hidrófobo salivando diante do imponderável.
Dá por si já dentro do quarto, sobressaltado com a ousadia do próprio gesto. A menina encontra-se na posição imaginada: estendida na cama, de bruços, lendo um livro. A camiseta mal cobre as nádegas, deixando antever parte da calcinha. A composição desse quadro tentador aprisiona-lhe o olhar aflito. Mas os pelos oxigenados, brilhando sob a luz da lâmpada, é que devem ficar para sempre em sua memória.

“Pai?”

"Sabe que não sou seu pai."

De joelhos, ao lado da cama, sentindo o cheiro bom de carne adolescente. Cabelos úmidos, respingando ainda, e o cheiro agradável de sabonete. Se estender a mão, pousando-a sobre as coxas grossas, provocará um incêndio devastador. (Na verdade, o incêndio já começou dentro dele, e se alastra.)

Sente o excesso de saliva na boca, quase o sufocando, e o suor que escorre em filetes pelas têmporas. O peito parece que vai explodir. Quantos, na idade dele, não resistindo ao impacto das emoções, explodiram de vez?

Devagar e sempre, meu velho. Primeiro passo: controlar a respiração.

A menina vira-se um pouco na cama, despindo-se mais ainda. Ele se assusta, temendo que ela vá se erguer e sair correndo.

“Quer alguma coisa, pai?”

“Já disse, não sou seu pai. Não quero ser seu pai. Não posso ser seu pai. Quero ser outra coisa...”

A menina sossega-se: terá entendido tudo?

Há nove anos, uma coisinha de nada, desnutrida, foi adotada por ele e a esposa. Mais por insistência da esposa: a pobrezinha já não tinha pai nem mãe, e os únicos parentes conhecidos eram dois tios: um era louco, e o outro, um bêbado irrecuperável. Além disso, os dois filhos que tiveram já estavam crescidos; logo estariam formados, casados, e eles ficariam muito sozinhos. A menina preencheria essa lacuna — e Deus ficaria grato por esse gesto humano, feliz. Cedeu: a esposa sempre teve um coração imenso.

Nove anos depois, ei-lo aí, ao lado da cama, diante duma mulher exuberante.

Aquele espaço de tempo havia sido o bastante para que aquela menina, do nada, se transformasse numa mulher. E desde o dia em que se surpreendeu admirando aquela metamorfose radical (coxas grossas, pelos dourados, peitos durinhos por baixo da blusa do colégio, lábios provocantes com batom lilás), desde aquele dia não conseguira mais dormir tranquilo.

A esposa teria notado alguma coisa? algum dos seus olhares insensatos? Não teria também se assustado com a nova mulher que andava pela casa dentro daquele short de malha, mais nua que vestida?

“Como você mudou. Deus há de me perdoar, mas estou louco por você...”

E as mãos, dementes, sobem arrepiando os pelos dourados. Aguarda que ela reaja energicamente, talvez se erguendo disposta a gritar.

“Canalha!”

Volta-se bruscamente: podia jurar que tinha ouvido a voz da esposa às suas costas. O temor de ser surpreendido aí, junto à cama da menina, tocando-a desse jeito, leva-o a ouvir e ver o que não há. Se olhar para o espelho em frente, fixamente, verá, com certeza, os olhos dos filhos recriminando-o, indagando como pode ele, um homem nessa idade, sério, estar aí, bulindo no corpo de uma menina de quinze anos.

“Não é uma menina, meus filhos. É uma mulher, e eu estou louco por ela. Eu perdi a razão...”

“Falando com quem, pai?”

Sobressalta-se: estará ficando louco? Se erguer os olhos, buscando, através do teto, o infinito, verá os enormes olhos de Deus cravados nele, queimando-o? Deus, com seu Velho Testamento, com seu Novo Testamento, seu Alcorão, seus breviários, seus pastores esbravejando contra os ímpios, seus exércitos de padres orando pelos fracos, seus rabinos, seus monges, seus profetas do apocalipse, da dor, do medo, todos reunidos neste momento para queimá-lo numa fogueira.

“Eu não tenho mais medo de nada. Você tem?”

Ela larga o livro de vez quando a mão dele penetra entre suas coxas, fendendo-as de leve. Depois, incisiva, cada vez mais para dentro dela. Pelos pubianos, cavidade muito quente, caminho sem retorno.

“Você quer, minha filha?”

Como seria bom se dissesse: Sim, eu quero, eu quero. Mas nem tudo é perfeito. Ainda bem que não gritou, pelo menos por enquanto, e isso o deixa mais aliviado; assim não será preciso recorrer a palavras duras, a gestos desagradáveis, porque, a essa altura, já não lhe é possível recuar.

Estará consentindo por temor? Contrai-se assim de nojo? Dor ou prazer? Ela teria gritado ou seria só mais uma das suas alucinações? E esta noite repentina, que estranho fenômeno será este?
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* Do livro A noite dos vagalumes, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária, FCDF.