8 de nov. de 2010

Rock

Por Paulo Siqueira
-
“Rosas sedentas mexiam-se nas trevas.”
(Isaac Babel, in A igreja de Novograd — A Cavalaria Vermelha)
-
E dizia para a nuvem: fica verde, e ela ficava; e dizia para o céu; dança, e ele dançava; e via tapetes imensos tecidos por um gênio fauvista, desenhos e risos de crianças; e a viagem não terminava, e entrava por um caminho de pétalas: o inferno, rio amargo, cavalgar Cérbero, estar com o Barqueiro; os círculos, em cada um perder-se infinitamente; as regiões de enxofre, os espaços enormes habitados pelo nada. Numa pequena sala, um agente do Hades lhe entrega uma folha para que escrevesse aos seus: Mãe, brinquei demais com o cogumelo e misturei umas drogas pesadas. Estou no último degrau do abismo. Não volto mais. Abraços no pai. Diz para os meninos da banda que eles não podem parar por minha causa. Queria escrever mais, mas me falta o ânimo. Adeus. Dado. O agente o conduz a outra sala, pede a ele que se deite em uma maca muito branca, que feche os olhos; segura suas pálpebras levemente até que adormeça, e afunda a mão precisa em seu peito, tira o coração e, estendendo o braço comprido, entrega a um jovem que espera com uma baixela próximo à porta, e este, com uma profissional delicadeza, cumprimenta lento com a cabeça, curva-se para a porta e vai por um corredor imenso, como quem navegasse, como quem não voltasse, até sumir.
-
Paulo Siqueira nasceu em Caratinga-MG. Professor de Português/Literatura na rede pública de ensino do DF. Tem dois filhos, a Rebeca e o Winie. Publicou O Tao da coisa (poesia, 1995), Lâmina (contos, 2004) e Abecedário (poesia, 2009). Bloga em http://atelieleve.blogspot.com/