Por Cesar Cardoso
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O SOL
No quarto andar do Mercadão de Madureira tem um loja, uma portinha, que só vende peneiras. Uma vez por mês eu vou até lá ver as novidades. Às vezes passo a tarde inteira ouvindo as explicações do dono, o Elias. Ele mesmo fabrica - ou faz, diz ele que peneiras de verdade não são fabricadas, são feitas – todas as peneiras que vende. Aprendeu o ofício com seu pai, que aprendeu com seu avô, em Portugal. Ele me conta quais as melhores madeiras, como envergá-las, que lixa usar. E os vários arames, suas flexibilidades, qual o melhor para cada tipo de peneira.
Hoje mesmo estive lá e comprei uma peneira nova. Não estava à mostra na loja, já no final da tarde o Elias foi ao depósito e voltou com ela. É feita com galho de goiabeira, que é maleável e resistente como nenhuma outra madeira. E seu arame é de uma flexibilidade que nunca vi. Além disso, a trama parece um tricô. Foi cara, mas valeu a pena.
Em casa fui fazer as tarefas de todo dia, tomar banho, preparar meu jantar, mas sempre levando a peneira comigo. Agora, coloquei-a na mesinha de cabeceira e vim me deitar, mas não consigo pegar no sono, com a mesma frase me martelando a cabeça, o tempo todo:
Será que amanhã vai fazer sol?
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A COLHEITA
Quando entra o inverno é a época de escolher as pedras. É importante que todas tenham tamanho e peso bem semelhantes. Já o formato e as cores devem ser o mais diferente possível.
Finda a seleção, é hora da lavagem. Deixamos de molho por três dias, em água do rio que tenha sido recolhida em noite de lua cheia. Em seguida espalhamos as pedras sobre os panos brancos. E depois vamos escová-las, uma a uma, primeiro com uma escova bem pequena, que alcance todas as reentrâncias, depois com um escovão, que lhes dê brilho e maciez.
Então chega a hora mais importante: o plantio. A terra tem que ser revolvida manualmente e depois penteada, com pequenos ancinhos de madeira, que nós mesmos fazemos. Em seguida preparamos as covas, que não podem nunca ser dispostas em linha reta, mas formando curvas. Por fim trazemos as pedras nos panos brancos e plantamos uma a uma, mais uma vez em noite de lua cheia.
A primavera é a época da expectativa e das conjecturas. E na primeira lua cheia do verão pegamos nossos cestos e começamos a colheita.
As pedras já estão maduras.
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O ESPECIALISTA
Eles me contrataram por um ótimo salário. Os horários são bastante flexíveis. E tenho total autonomia para definir a ordem e o cronograma de todas as etapas. Também acenaram com grandes possibilidades de ascensão na empresa e se dispuseram a arcar com as despesas de um pós-doutorado no exterior.
Querem que eu preencha os vazios. Mas minha especialidade é esvaziar os cheios.
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HIMENÓPTEROS FOMICÍDEOS
Passei a tarde toda desenhando formigas. De todos os tipos, tamanhos e cores.
A formiga-de-bode, azulada e que não dá picadas. A de ferrão, bem preta e de corpo alongado. A correição, com suas enormes mandíbulas. A lava-pé ou malagueta, miúda, sem olhos. A chiadeira, também chamada formiga-de-bentinho ou feiticeira, de cor avermelhada e abdômen arredondado. A asteca, a mais gordinha de todas, talvez por viver comendo os frutos dos cacaueiros da Bahia. A violenta cabaça, que se alimenta de cupins bem maiores do que ela. A açucareira, tão miudinha e roxa, sempre catando doces nas nossas cozinhas. A argentina ou cuiabana, amarelada e de antenas longas. A quenquém ou caçadora, que voa com desenvoltura. A estranha formiga-leão, que parece uma libélula. E as nossas tão conhecidas saúva e tanajura, temidas na lavoura e apreciadas na farofa.
À noite, enquanto eu dormia, elas saíram dos cadernos, em largas filas. Tanajuras, saúvas, leões. Desceram ordenadamente pelas pernas da mesa e tomaram todo o chão da sala. Quenquéns, argentinas, açucareiras, cabaças. Atravessaram a casa em marcha, até subir pelos pés da minha cama. Astecas, feiticeiras, malaguetas, correições, de ferrão, de bode. E então comeram meus olhos.
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Cesar Cardoso é escritor, colaborador da revista Caros Amigos, roteirista de TV e fotógrafo. Tem o blog PATAVINA’S – http://cesarcar.blogspot.com
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O SOL
No quarto andar do Mercadão de Madureira tem um loja, uma portinha, que só vende peneiras. Uma vez por mês eu vou até lá ver as novidades. Às vezes passo a tarde inteira ouvindo as explicações do dono, o Elias. Ele mesmo fabrica - ou faz, diz ele que peneiras de verdade não são fabricadas, são feitas – todas as peneiras que vende. Aprendeu o ofício com seu pai, que aprendeu com seu avô, em Portugal. Ele me conta quais as melhores madeiras, como envergá-las, que lixa usar. E os vários arames, suas flexibilidades, qual o melhor para cada tipo de peneira.
Hoje mesmo estive lá e comprei uma peneira nova. Não estava à mostra na loja, já no final da tarde o Elias foi ao depósito e voltou com ela. É feita com galho de goiabeira, que é maleável e resistente como nenhuma outra madeira. E seu arame é de uma flexibilidade que nunca vi. Além disso, a trama parece um tricô. Foi cara, mas valeu a pena.
Em casa fui fazer as tarefas de todo dia, tomar banho, preparar meu jantar, mas sempre levando a peneira comigo. Agora, coloquei-a na mesinha de cabeceira e vim me deitar, mas não consigo pegar no sono, com a mesma frase me martelando a cabeça, o tempo todo:
Será que amanhã vai fazer sol?
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A COLHEITA
Quando entra o inverno é a época de escolher as pedras. É importante que todas tenham tamanho e peso bem semelhantes. Já o formato e as cores devem ser o mais diferente possível.
Finda a seleção, é hora da lavagem. Deixamos de molho por três dias, em água do rio que tenha sido recolhida em noite de lua cheia. Em seguida espalhamos as pedras sobre os panos brancos. E depois vamos escová-las, uma a uma, primeiro com uma escova bem pequena, que alcance todas as reentrâncias, depois com um escovão, que lhes dê brilho e maciez.
Então chega a hora mais importante: o plantio. A terra tem que ser revolvida manualmente e depois penteada, com pequenos ancinhos de madeira, que nós mesmos fazemos. Em seguida preparamos as covas, que não podem nunca ser dispostas em linha reta, mas formando curvas. Por fim trazemos as pedras nos panos brancos e plantamos uma a uma, mais uma vez em noite de lua cheia.
A primavera é a época da expectativa e das conjecturas. E na primeira lua cheia do verão pegamos nossos cestos e começamos a colheita.
As pedras já estão maduras.
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O ESPECIALISTA
Eles me contrataram por um ótimo salário. Os horários são bastante flexíveis. E tenho total autonomia para definir a ordem e o cronograma de todas as etapas. Também acenaram com grandes possibilidades de ascensão na empresa e se dispuseram a arcar com as despesas de um pós-doutorado no exterior.
Querem que eu preencha os vazios. Mas minha especialidade é esvaziar os cheios.
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HIMENÓPTEROS FOMICÍDEOS
Passei a tarde toda desenhando formigas. De todos os tipos, tamanhos e cores.
A formiga-de-bode, azulada e que não dá picadas. A de ferrão, bem preta e de corpo alongado. A correição, com suas enormes mandíbulas. A lava-pé ou malagueta, miúda, sem olhos. A chiadeira, também chamada formiga-de-bentinho ou feiticeira, de cor avermelhada e abdômen arredondado. A asteca, a mais gordinha de todas, talvez por viver comendo os frutos dos cacaueiros da Bahia. A violenta cabaça, que se alimenta de cupins bem maiores do que ela. A açucareira, tão miudinha e roxa, sempre catando doces nas nossas cozinhas. A argentina ou cuiabana, amarelada e de antenas longas. A quenquém ou caçadora, que voa com desenvoltura. A estranha formiga-leão, que parece uma libélula. E as nossas tão conhecidas saúva e tanajura, temidas na lavoura e apreciadas na farofa.
À noite, enquanto eu dormia, elas saíram dos cadernos, em largas filas. Tanajuras, saúvas, leões. Desceram ordenadamente pelas pernas da mesa e tomaram todo o chão da sala. Quenquéns, argentinas, açucareiras, cabaças. Atravessaram a casa em marcha, até subir pelos pés da minha cama. Astecas, feiticeiras, malaguetas, correições, de ferrão, de bode. E então comeram meus olhos.
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Cesar Cardoso é escritor, colaborador da revista Caros Amigos, roteirista de TV e fotógrafo. Tem o blog PATAVINA’S – http://cesarcar.blogspot.com