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23 quilos, era o peso dela quando a conheci. Não pensei duas vezes e a
levei pra casa. Três meses depois ela já pesava quase 100. Fiquei
satisfeito por ter podido ajudá-la a superar a fome.
Desde então ela desenvolveu um apetite daqueles. Por isso não me
impressionei quando ela almoçou os móveis da casa.
Numa tarde de março, enfim, ela começou a comer as paredes.
- Que tal? - eu perguntei.
- Falta molho - ela respondeu.
Hoje pela manhã, depois de lanchar o último tijolo da nossa casa, ela
me lançou um olhar cheio de desejo. Sei o que ela quer. Falar que
estou magro, isso & aquilo, não vai adiantar. Ao conhecê-la,
compreendi imediatamente que com uma mulher faminta não se
discute.
2
Sempre gostei de carneiros. Minha infância foi repleta deles: carneiros
brancos, pretos, verdes; carneiros altos, sorridentes, inquietos,
carneiros quadrados. À mesa também estiveram muitos carneiros, que
mamãe preparava com um exagero de vinho e pimenta e hortelã.
Hoje, no entanto, não vejo mais carneiros por aí. Uma tristeza. As
pessoas, aliás, nem sabem o que é isso. Algumas consideram já ter
visto algo parecido na TV; outras, em fotos amareladas. As crianças que
eu conheço acham que os carneiros são apenas seres imaginários
criados pela internet.
Foi por causa disso que resolvi fotografar carneiros. Trazê-los de volta
à luz, resgatá-los do esquecimento. Provar ao mundo que eles ainda
existem.
Tenho 7 câmeras que registram tudo o que passa na rua, 24 horas por
dia, todos os dias. Meu esforço, no entanto, tem resultado inútil:
acumulo já há meses fotos e mais fotos de caminhões, dinossauros,
tigres de bengala e fusquinhas, hidras, minotauros, senhores de chapéu
coco, medusas, anjos e demônios, a putaquiuspariu. Carneiros,
nenhum.
3
Tiro um crocodilo da boca, sem nenhum esforço. Os relâmpagos partem
dos meus dedos como se ali tivessem passado toda a sua existência.
Jarros e guarda-chuvas brotam dos meus bolsos com naturalidade.
Dependendo do meu humor, meus olhos lançam chamas azuis ou
verdes.
Não posso evitar nada disso; sou assim desde sempre. Meus pais
ganharam fortunas me exibindo. Eu, de fato, ganhei apenas poeira e
sol. Mamãe só expressava o seu amor por mim aos tapas. E meu pai
nunca teve olhos de me ver. A criança que eu fui se perdeu no
calendário. Minha juventude é névoa. Sou apenas isso hoje: um homem
que fala gafanhotos.
Um dia, é claro, me cansei da família e dos espetáculos. Fui para o
mundo tentar ser comum. Mas no escritório onde trabalhei todos
ficaram chocados com as cobras que surgiam dos meus sapatos. Fui
garçom por dois dias, apenas; nenhum cliente gosta de um sujeito que
serve meias de seda e alicates junto ao prato principal.
Acabei, portanto, voltando ao mundo dos espetáculos. Agora ganho a
vida no circo que me abrigou. É o lugar que me cabe na terra. Gente de
todo lugar vem me ver. Ficam maravilhados com as bugigangas que
brotam do meu corpo. Eu me apresento, agradeço os aplausos e me
retiro para o camarim. A sós, diante do espelho, de mim brotam apenas
lágrimas e tédio.
4
– Que tipo de datas o senhor vende?
– Todos eles. Tenho datas de casamento, de nascimento, datas para
espetáculos e solenidades, datas para sorrir e para chorar, et
cetera. O meu catálogo é o mais completo.
– E datas de falecimento?
– São as mais procuradas, tanto que para elas ofereço diversas
modalidades: falecimentos acidentais, criminosos, por tédio e, é
claro, naturais. Lógico que para tais datas cobro uma taxa extra,
mas o serviço é de primeira.
– Posso escolher?
– Por favor.
– Esta aqui parece boa: 1° de abril de 2300.
– Perfeitamente. Mas devo lhe avisar que períodos superiores a cem
anos sofrem um acréscimo de cinqüenta por cento.
– Dinheiro não é problema. Pago agora.
– Quem manda é o senhor. Já escolheu a modalidade?
– Morte natural.
– Naturalmente.
– Agora me diga: quais são as garantias de que só morrerei na data
prevista?
– Garantias? Do que o senhor está falando?
– Do que eu estou falando? Essa é boa! Acabei de pagar uma fortuna
pela data, não paguei?
– Disse bem: pela data. Quem vende garantias é outra pessoa. E
agora, com licença. O fim do mês está aí e o aluguel, o senhor
sabe, não espera.
5
Rolava na cama, sabia que era um sonho, mas rolava e rolava na cama.
Em alguns momentos parava, encontrava a si mesmo no corpo de um
estranho animal e então enchia-se de pavor. Logo em seguida repetia
“é um sonho é um sonho” e relaxava, o sono tornando a fluir lento e
macio. O sonho, contudo, envolvia-o novamente em suas garras e ele se
via como um gato, um guarda-roupas, um abismo sustentado pela
vertigem.
A noite correndo solta, projétil veloz em direção ao susto, e ele na
cama, rolando, sonhando. Nunca antes sonhara com tal intensidade, tal
realismo: sim, era ele o cavalo que subia escadas, reconhecia seus
cascos cintilantes no mármore frio e o cheiro viril que se desprendia de
seu pêlo. Era também o anjo desgovernado em queda, o Expulso, o
exilado dos céus. E era ainda a flecha em vôo e o ar cortado pela
flecha, o caos e a plenitude, o princípio e o fim, o macaco.
Era o macaco, ele sabia, e sabia também que as lendas atribuíam ao
macaco a origem do homem. Não queria sonhar-se homem, sentir-se
homem, completamente homem, e por isso ele, Centauro, despertou.