26 de set. de 2010

Cavalos mortos

Por Marcia Barbieri
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“Não ponha o sol sobre vosso ressentimento”
Ef 4, 26b
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Fechei devagar minhas pálpebras caídas - inveja de todo peixe, e mais uma vez vi um campo fértil, embora solitário. Desde muito cedo aprendi a observar e em todas as faces eu encontrava minúsculas moscas brancas, criadas entre os carvalhos da ignorância humana. Contemplei o medo nos olhos de vidros dos corvos que testemunharam a morte de Van Gogh.
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Sentei nu de frente para o horizonte antes da aurora e fiquei imaginando qual seria o gosto daquelas papoulas encarnadas, nascidas tão à margem dos cavalos mortos.
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O dia está quente, não tiro a blusa, remexo os bolsos da calça, mas esqueci o que procurava, tento avançar, não é possível, creio que nenhum um homem pode avançar. Somos cães loucos rosnando para o próprio rabo, escorpiões ferroando as próprias cabeças, experimentando a eficácia de seu veneno. E os velhos são como caranguejos, andam para trás e alimentam-se dos defuntos da memória. Sempre veem multidão na solidão oca das coisas.
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A velhice exala o odor do estrume – fetos prematuros nascidos da imensidão dos dias. Não se iluda, o tempo não tem aliados, é um sádico nos arrancando, pacientemente, vértebra por vértebra, recordando a falência dos nossos instantes. Ele me fez tão mesquinho, que agora sou um verme roçando a carne verde e indigesta dos cavalos mortos. Cavalgando com serenidade, todas as manhãs (meus cadáveres), esses animais selvagens que já não precisam de selas. Cascos trotando na reminiscência cíclica dos vitrais.
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- Você pode me dar uma chance?
- E quantas mais?
- Eu juro que dessa vez eu farei tudo diferente, eu te provarei que posso ser quem nunca fui.
- E o que eu ganho acreditando?
- Amor em dobro, como na música.
- Estou cansada de servir de tema pra suas metáforas inúteis, é um jogo sórdido, machucar em nome da arte.
- Não, não é um jogo, eu errei, foi só isso, todo mundo erra. Porra!!!! Eu sou humano.
- Tenho percebido. Só que eu não sou tão madura para compreender essa separação entre corpo e alma, afinal, será que realmente o coração é uma casa de putas com mil janelas como disse Gabriel Garcia Márquez?
- Só o tempo te mostrará que mudei.
- Tudo bem, eu aceito esperar... Tenho pouca coisa a perder...
- Eu te amo, eu vou te provar, você não vai se arrepender, eu serei o melhor homem, daqui a cinquenta anos, você se lembrará disso e pensará, enfim, valeu a pena acreditar.
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Nossos homicídios premeditados não renderam grandes prisões. Como disse antes, o tempo é sarcástico, um verdadeiro gozador. Minhas traições ainda estão sendo tragadas, lentamente, feito um cigarro eterno de infelicidades. Enfisemas espalham-se por todo meu corpo. Um vagalume apagado perdido nas noites escuras. Lembro-me agora do verso de Lorca: “a morte botou ovos na ferida”. Espalho o amarelo sujo dos caracóis surgidos de gozos infecundos.
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Não foi possível provar nada, não sei se mudei. Também não acredito que fantasmas presenciam nossas condutas. Há trinta anos questionaram-me o motivo de eu não jogar terra em você. E hoje eu sei responder. Afinal, como eu poderia jogar terra perante sua eternidade, se antes já roubara e regurgitara teus sonhos?
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Acabo de lembrar o que procurava no bolso, era sua foto três por quatro, desenhei ano a ano as rugas que teria, assim sinto que envelheceu junto comigo.
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A manhã parece fria. Volto para nossa casa, ela ainda tem a mesma cor, as nuances do sol do Mediterrâneo. Na minha boca, o gosto amargo dos cavalos mortos...
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Marcia Barbieri é paulista. Tem textos publicados nas revistas literárias Meio Tom, Germina, Escritoras Suicidas e O BULE. Colunista da revista Caos e Letras. Publicou em 2009 o livro de contos Anéis de Saturno.