3 de jul. de 2010

The victory and the page

Por Milena Martins
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Para Alessandra Migueis
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Olha, quis gritar, olha pra cima. Daí de onde você está, você ainda pode me ver. Olha fundo nos meus olhos, verdes como os teus. E desiste. Eu vou te estender um par de brincos, uma coroa de flores, uma toalha quadriculada verde e vermelha sobre a grama verde num dia de sol, uma ciranda de criança em pátio de escola, um solo de violino de Pagianini, um solo de guitarra de Steve Vai. Não vai, quis gritar. Mas ela já não me ouviria.
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Eu vi a luz amarela se acender com dificuldade, tão diferente das outras, todas brancas. Devo ser amarela também, quis gritar. Deve ser o vento frio, o Natal chegando, as casas sem pintura, os anúncios de cosmético, os capítulos da novela, as notícias de jornal, os sucessos do rádio, os sermões dos templos, os vagões do metrô. O mundo é grande, quis gritar. Eu juro, quis gritar. Mas ela já não me ouviria.
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Olha, eu prometo que não te deixo sozinha, quis gritar. Só me deixe dormir uma noite a mais, ver um filme a mais, ouvir mais uma música, andar de bicicleta, de charrete e de avião, assistir a um show de rock, a uma final de copa, ir a praia vestida de vermelho, como as flores da sua árvore, cantar mais uma vez Space-Dye Vest. Olha, quis gritar, olha pra mim e me permite. Quis gritar, mas ela já não me ouviria.
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Espera, espera a chuva de vento passar, as flores vermelhas sumirem, os carros cruzarem as ruas debaixo da minha janela. Quis gritar: espera, que a água deve estar gelada na cascata depois do horizonte, o abismo de lá deve ser maior que o daqui, as folhas em branco não devem mais me assutar depois do solo de piano. Te preparo um teto mais doce, paredes menos crespas, um café mais quente, uma vida mais fácil, uma dor de cabeça mais fraca depois de um porre mais forte, uma mesa enfeitada pro teu aniversário, te dou uma data bonita e amigos do peito, te trago pra parte mais alta da roda gigante parada no mar, te tiro a dor, o ócio e o desespero depois que Kevin Moore tocar a última semibreve em ré menor. Quis gritar: só mais uma ficha na junky box, um tiro a mais na barraca dos patos (te ganho um urso de pelúcia, prometo). Quis gritar. Mas ela já não me ouviria.
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Na amurada do abismo, eu a via entrar aos poucos nas ondas, ela ia sumindo nas ondas. As ondas eram fracas, talvez gostassem de engoli-la aos poucos, amarela como eu. Do outro lado, as grades. Eu sabia, mesmo sem ver. E quis gritar, chorar, me desesperar, querer muito, mais, tudo, o mundo, e conseguir tudo o que eu quisesse. Quis gritar: não entra aí, é fundo, eu não posso te salvar se você for muito fundo. Eu não sei assobiar, andar de bicicleta, piscar um olho só, falar o caricaturista caricaturou a caricatura do caricaturador muito rápido três vezes seguidas, diferenciar a esquerda da direita, ver as horas em ponteiros, nadar. Quis gritar: não sei nadar. Estamos sós. Só eu te vejo, mesmo na multidão. Mas ela já não me ouviria.
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Eu não sabia mais nada. Eu não sabia mais ser. Nenhum braço amigo me seguraria se eu me debatesse de dor, de raiva, de desespero, de pavor, porque eu já não tinha mais ninguém. E eu estava com medo. Por ela, que desaparecia nas ondas. Por mim, que não tinha coragem. Por todos, que eu já não podia ver. Pelo mundo, que tinha sumido lá fora. Eu era o de dentro. Eu sabia que isso podia machucar.
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Não deixei essa lágrima cair, quis gritar, enquanto me punha de pé na amurada do abismo. Não deixei essa lágrima rolar pelo rosto, pingar do queixo e ir se juntar com a água também salgada das ondas aí embaixo. Eu vou expurgar todas as palavras, todos os dias, todos os gritos, as receitas que eu nunca aprendi, as conversas que nunca me interessaram, a poeira acumulada nos cantos do quarto lá fora, toda a cinza morta lá fora entrando pelos meus pulmões, o silêncio embaçado de fumaça entre nós, o espaço branco entre os meus olhos verdes, a curva da tua pupila funda, sem alma e viva, como já não sei mais ser, a tua mão amarela, perfeita, infeliz e insuficiente. Pra que tudo vire linha. Eu juro, quis gritar, que te faço escrava, que te faço letra, que te faço linha, que te faço folha, que te faço página. Eu vou te trazer pro mundo, quis gritar. Eu te faço minha, sem bálsamo, sem escolha, sem misericórdia, sem dor. You'll be on my pages. And I'll feel at peace with the girl in my dreams. Quis gritar, mas ela já não me ouviria.
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Então tomei o primeiro impulso.
Desisti.
Tomei o segundo impulso.
Desisti.
Fechei os olhos e quis gritar: Espera.
Abri os olhos e vi que as grades, as grades, sempre estariam escondidas demais pra que eu não as visse.
Fechei os olhos e então quis gritar.
Tenho medo, quis gritar.
Mas eu não tinha.
Estou indo, quis gritar.
Mas tive medo.
Quis abrir os olhos outra vez, ver se ainda havia escolha, se ela ainda estava lá, se as grades se mostraram (e isso era ser tão livre), mas não consegui. E tomei mais um impulso.
Quis desistir, então, e novamente.
Quis querer gritar, chorar, me desesperar, me debater, me libertar.
Mas, em vez disso, mergulhei.
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Do livro Promessa Vazia, que será lançado pela Multifoco Editora este ano.
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Milena Martins nasceu no ano de 1986, no Rio de Janeiro, onde vive. É formada em Letras e cursa mestrado em Literatura Brasileira, ambos pela UERJ. Gosta de poesia em inglês e de rock pesado. Não sabe andar de bicicleta nem assoviar. É mezzo-soprano, ambidestra, tem medo de andar de avião e fica feliz quando os flamboyants estão floridos. Quando escreve, cala muitas coisas. Está lançando o livro Promessa Vazia (Multifoco Editora).