20 de abr. de 2010

'Mulheres' - parte 10

Por Claudio Parreira

AQUILO QUE SUSTENTA O AMOR
ELA TEM TRÊS OLHOS, mas isso não me incomoda nem um pouco. Pelo contrário: são três olhos belíssimos, um deles um pouco torto, é verdade, mas ainda assim. Tem também uma cauda enorme, na qual tropeço de vez em sempre, mas isso pouco me importa. Às vezes, quando furiosa por coisas mínimas ou máximas, dependendo da posição dos astros ou do resultado das loterias, ela costuma me chicotear a bunda com a ponta espinhuda da caudalheira — mas eu até que curto isso. E dizer aos outros que ela tem o maior rabo do mundo me enche de orgulho.
Essa mulher aí, com seus 300 quilos e escamas de navalha, pra mim, não tem defeito algum. Os maldosos de plantão, que estão por aí feito piranhas alucinadas, costumam dizer que o seu hálito venenoso e suas quatro mãos frias configuram, sim, graves defeitos. Eu não ligo. Sei do seu coração direito, aquele que fica logo abaixo dos outros dois.
Conheço essa mulher desde que a arranquei das páginas de um livro antigo. Lembro como se fosse hoje: ela tava lá, imóvel e triste figura, esperando por mim. Quando abri o livro (era uma feira, acho, ou Bienal, ou ainda no buteco do Zé, que servia cachaça com torresmo & clássicos literários no balcão), o destino já estava traçado: bati os olhos nela, ela sorriu pra mim com o primeiro dos seus maxilares. Amor à primeira vista, caralho, é claro que sim.
Depois desse encontro digno de filme, nos transformamos em alvo de preconceito de toda espécie: os meus não a aceitaram (não aceitam até hoje), os dela não me aceitaram (e não mudaram de opinião). Tentamos, é claro, convencê-los de qualquer forma, argumentar religiosamente, oferecemos um dinheirinho por fora, et cetera, mas não teve jeito. Acabamos mandando todo mundo sifudê. Tínhamos um ao outro e a promessa de um amor eterno enquanto duro pela frente.
Hoje, portanto, estamos aí pro que der e vier. Às vezes ela pisa em mim com uma de suas 12 patas, mas eu, cristão, ofereço a outra face (ou a outra costela, dependendo da fratura). É o amor, gente, o amor.
A única coisa que me incomoda um pouco nessa história natural e edificante é a sensação de que ela não me leva muito a sério. Nunca falou nada a respeito, é claro, mas tenho cá as minhas dúvidas. É como se eu desconfiasse de chifres. Uma grande bobagem — afinal, quem tem chifres é ela, oito, de várias formas e tamanhos.
Mesmo assim, eu tenho cá as minhas convicções. Ela pode até não acreditar em mim, achar que sou imaginário, mas eu acredito nela do jeito que ela é ou possa vir a ser. Isso é o suficiente, é o que sustenta e suporta o nosso amor.

SEM DISCUSSÃO

23 QUILOS, era o peso dela quando a conheci. Não pensei duas vezes e a levei pra casa. Três meses depois ela já pesava quase 100. Fiquei satisfeito por ter podido ajudá- la a superar a fome.
Desde então ela desenvolveu um apetite daqueles. Por isso não me impressionei quando ela almoçou os móveis da casa.
Numa tarde de março, enfim, ela começou a comer as paredes.
Que tal? — eu perguntei.
Falta molho — ela respondeu.
Hoje pela manhã, depois de lanchar o último tijolo da nossa casa, ela me lançou um olhar cheio de desejo. Sei o que ela quer. Falar que estou magro, isso & aquilo, não vai adiantar. Ao conhecê-la, compreendi imediatamente que com uma mulher faminta não se discute.