3 de fev. de 2010

Os colunistas d'O BULE entrevistam Nelson de Oliveira


Ficcionista, resenhista, agitador cultural, organizador de antologias polêmicas e de sucesso – são vários os qualificativos que poderiam ser usados para o nosso primeiro entrevistado: Nelson de Oliveira. Ele nasceu em 1966, em Guaíra, SP. Escritor e doutor em Letras pela USP, publicou mais de vinte livros, entre eles Naquela época tínhamos um gato (contos, 1998), Subsolo infinito (romance, 2000), O filho do Crucificado (contos, 2001, também lançado no México), A maldição do macho (romance, 2002, publicado também em Portugal), Algum lugar em parte alguma (contos, 2006) e A oficina do escritor (ensaios, 2008). Em 2001 organizou a antologia Geração 90: manuscritos de computador e em 2003, Geração 90: os transgressores, com os melhores prosadores brasileiros surgidos no final do século 20. Foi um dos curadores das duas primeiras edições dos Encontros de Interrogação, realizados no Instituto Itaú Cultural em 2004 e em 2007, e é um dos criadores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA. Atualmente coordena a coleção Panacéia, da editora Ofício das Palavras, e o Projeto Portal, de narrativas de ficção científica. Dos prêmios que recebeu destacam-se o Casa de las Américas (1995), o da Fundação Cultural da Bahia (1996), duas vezes o da APCA (2001 e 2003) e o da Fundação Biblioteca Nacional (2007). Atualmente também coordena, em várias instituições, oficinas de criação literária para escritores com obra ainda em formação.
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JEAN ROBERTO: Fale sobre suas influências literárias… Quais autores e livros mais lhe marcaram?
NELSON: Pergunta complicada. No início de minha carreira era mais fácil falar das influências literárias. Eu era jovem, passional, deslumbrado. Kafka foi o primeiro prosador que me inquietou. O processo. Os contos. Em seguida veio Cortázar. O jogo da amarelinha. Depois Guimarães Rosa, Campos de Carvalho, os surrealistas… Mas hoje os livros desses autores estão muito misturados na minha cabeça. Faz tempo que não os releio. Pertencem a uma paisagem vigorosa e terrível, mas distante, perdida na neblina. E há também os poetas, os versos entusiasmados de Álvaro de Campos, Murilo Mendes, as Galáxias de Haroldo de Campos… Dimensões sempre surpreendentes da realidade.
JEAN ROBERTO: Sua formação é em Artes Plásticas... Qual exerceu maior influência sobre sua vida: as artes plásticas ou a literatura?
NELSON: Ambas. E a música. A fotografia. O teatro. O cinema. Todas as artes me influenciam. Fico sempre atento aos detalhes de uma pintura, de um longa-metragem, de uma sinfonia. A maneira como o compositor organiza os metais, o modo como o pintor harmoniza as massas de cor, essas soluções me inspiram, sugerem enredos. Já perdi a conta de quantos contos eu escrevi inspirado por uma sonata ou por uma canção, ou por um quadro, ou por um curta-metragem de animação.
JEAN ROBERTO: Qual – ou quais – das suas antologias você considera provocadora(s)? (Ou que assim foi interpretada.) A polêmica na literatura desperta interesse no leitor? Ela pode ser considerada um trunfo (uma boa estratégia) ou uma apelação?
NELSON: As duas antologias da Geração 90 foram as mais provocadoras. Ambas somam forças, gosto de vê-las trabalhando juntas. Mas não resta dúvida de que a segunda, Os transgressores, provocou individualmente um debate mais interessante. Pena que vários resenhistas deixaram de analisar os contos reunidos e se concentraram (apenas) na questão proposta pelo título da antologia. A sociedade industrial se quer ordenada e controlada; nela, porém, crimes e transgressões se multiplicam. Acabo de ler isso na coluna do Jorge Coli, no caderno Mais, da Folha de S.Paulo. Transgredir é não cumprir, não observar ordem, lei, regulamento etc. É infringir, violar. Está no Houaiss. Se você avança o sinal vermelho ou espanca alguém, você é um transgressor. Então com Os transgressores voltou à tona, no início do século 21, a reflexão sobre a função do escritor e da literatura na sociedade atual. A grande pergunta que a antologia lança é: o escritor deve respeitar as imperfeitas leis morais, religiosas, gramaticais e sociais de sua comunidade? Ou ele deve denunciar a imperfeição dessas leis, desrespeitando-as, não na avenida ou na praça, porque aí ele seria preso, mas em sua literatura? Escritor, na minha opinião, tem que avançar o sinal vermelho. E atropelar a sexagenária. Figuradamente, é claro. A literatura deve ser o machado que quebra o mar congelado que há dentro de nós. É o que Kafka dizia.

GERALDO LIMA: Nelson, o livro de contos Treze marcou um momento radical na sua trajetória literária, tanto na construção dos textos, caracterizados por um humor ácido, pelo insólito e pelo jogo com a linguagem, quanto pela concepção da capa. Há ainda a possibilidade de se repetir algo assim na sua produção literária?
NELSON: O projeto gráfico do Treze é bastante inspirado e arrojado, e o crédito vai todo para o designer e editor Joca Reiners Terron. A foto da capa e a da quarta capa são provocativas. E cada miniconto ganhou, como ilustração, a foto de um paciente de um hospício da Inglaterra vitoriana. São imagens impressionantes, de pessoas saídas de um circo de esquisitices. E a fantasia do leitor logo acaba encontrando um sentido para essa combinação inesperada de fotos e contos. Sempre é possível que soluções desse tipo aconteçam, desde que o editor e o autor não estejam preocupados em agradar o grande público. Soube há pouco que um pós-graduando da Universidade de Feira de Santana escolheu o Treze e seu irmão gêmeo, Ódio sustenido, como tema de sua dissertação de mestrado. Notícias como essa fazem o trabalho valer a pena.
GERALDO LIMA: A recusa ao realismo é uma característica marcante da sua obra ficcional, que vai do fantástico ao absurdo, e isso sinaliza uma coerência no seu trabalho literário. Houve algum momento nessa sua trajetória em que você tenha escrito contos realistas, ou já começou a escrever influenciado pelo fantástico?
NELSON: Se o prosador realista é o que procura realizar o retrato fiel da realidade, então posso dizer, sem medo de errar, que sempre fui um autor realista. O delírio, o absurdo, a violência, o erotismo, a iluminação e a loucura são dados reais de nossa sociedade. Do primeiro ao último livro, procurei aprisionar apenas as várias facetas desse primata neurótico conhecido como Homo sapiens. Para mim o cotidiano sempre pareceu algo desconcertante: um milagre, uma maldição. Antes de meu nascimento havia o vazio, depois de minha morte haverá o vazio. Sou, somos todos, em conjunto, um ponto fugaz, finito, entre duas eternidades, dois infinitos. É sobre esse espanto, esse desconcerto do mundo – real! –, que eu gosto de escrever.
GERALDO LIMA: Que respostas você obteve do público e da crítica em relação aos seus três romances Subsolo infinito, A maldição do macho e O oitavo dia da semana?
NELSON: Minha modéstia diria: as melhores respostas possíveis, meu esforço foi recompensado em dobro. Minha vaidade diria: poucas, muito poucas, meus romances mereciam mais e melhores respostas. Minha modéstia diria que o copo está metade cheio, minha vaidade diria que está metade vazio. Vivo oscilando entre esses extremos. Agora estou lançando o quarto romance, Poeira: demônios e maldições, pela Língua Geral. Qual será a reação do público e da crítica? Difícil prever. Quem sabe dessa vez o líquido do copo finalmente transborde… Seria ótimo.

MAURO SIQUEIRA: Você foi o organizador das antologias Geração 90: manuscritos de computador e Geração 90: os transgressores, que são consideradas marcos da literatura brasileira do início do século 21. Atualmente pululam antologias por todos os lados, algumas até de gosto e qualidade duvidosos, das quais os autores iniciantes pagam para participar. Hoje você se proporia a criar uma Geração 00? Aliás, ainda faz sentido o termo geração?
NELSON: A terceira e última antologia, que completará a trilogia, já está sendo organizada e se chamará exatamente Geração Zero Zero. Prefiro grafar zero zero por extenso, pra evitar a ambigüidade com ó ó. Combinei com a Boitempo de lançarmos no final de 2010. Estou reunindo os vinte melhores prosadores brasileiros que estrearam depois da virada do século. É verdade, estamos vivendo a era das antologias. Os cem melhores isso, os cem melhores aquilo… Mas eu gosto de fazer a distinção entre antologia e coletânea. Pra mim, antologia ou florilégio ou seleta é a reunião de textos já publicados e consagrados pelo tempo. Coletânea é a reunião de textos inéditos, que ainda passarão pelo crivo dos leitores e dos especialistas de várias gerações. Tendo isso em mente, optei pela provocação: decidi selecionar os melhores autores, em vez de os melhores textos. Ou seja, organizei a primeira antologia de autores, de que se tem notícia, e esses autores colaboraram com textos inéditos. Então você me pergunta se ainda faz sentido o termo geração… Creio que seu uso sempre fará sentido, desde que o termo não seja consumido em exaustivas discussões escolásticas ou xiitas. Em certas ocasiões é muito útil falar na geração modernista, na Geração de 45, na geração concretista, na Geração 90, mesmo que os muitos integrantes de cada geração sejam autores bem diferentes entre si, como são, por exemplo, Mário e Oswald de Andrade. O reconhecimento de padrões, não importa se observando o céu noturno ou o oceano humano, é um de nossos processos mentais mais característicos.
MAURO SIQUEIRA: No livro Breve manual de estilo e romance, o autor mineiro Autran Dourado afirma que para escrever, se você faz prosa, você deve ler poesia; se for poeta, deve ler contos e romances. Como forma de oxigenação das ideias. Como o escritor iniciante deve se armar para a sua escrita hoje?
NELSON: Sem sequer conhecer essa afirmação do Autran, eu já estava convencido de sua verdade. No livro A oficina do escritor, destinado aos autores em início de carreira, eu recomendo exatamente isso e muito mais: importante para quem deseja escrever boa prosa é não deixar de ler bons poemas; importante para quem deseja escrever bons poemas é não deixar de ler boa prosa; evite os estereótipos, fuja dos clichês, corra dos chavões, não marque encontro com os lugares-comuns; afaste-se do tratamento edificante, repleto de boas intenções, afinal bons sentimentos não fazem boa literatura; liberte o humor e a fantasia; desconfie dos livros de sua predileção, desconfie mais ainda dos autores de sua predileção. Livros e autores, ame-os intensamente, sim, mas jamais se entregue à idolatria cega, pois os escritores talentosos são mestres na arte da sedução.
MAURO SIQUEIRA: Literatura é emprego?
NELSON: Primeiro é paixão. Destino. Maldição. Se você tiver talento e sorte, sua literatura poderá ajudar a pagar algumas contas. Se você tiver talento e mais sorte ainda, ela poderá proporcionar relativo conforto material. Tudo indica que Rubem Fonseca e José Saramago não estão passando fome. Literatura depende de talento, determinação e sorte, muita sorte. Apenas talento e determinação são insuficientes. Mas não pense que estou sendo supersticioso, quando falo em sorte. Estou sendo bastante racional. Os matemáticos e os físicos de hoje já sabem que o acaso — o aleatório — determina profundamente nossa vida, nossos projetos. O sucesso e o fracasso estão sujeitos às leis da probabilidade, é o que afirma O andar do bêbado, best-seller do físico Leonard Mlodinow. A fim de aumentar suas chances de sucesso, a grande maioria dos escritores é obrigada a ter um emprego, para se manter e manter seu sonho. Pode ser um emprego numa área próxima, como o jornalismo ou o magistério. Eu, por exemplo, dou aula em universidades, faço crítica literária nos jornais e também trabalho como consultor de uma editora. Tudo isso me dá a estabilidade necessária pra que eu possa seguir em frente com minha carreira literária.

ROGERS SILVA: Você é o organizador do Projeto Portal, cuja proposta é, com seus seis números, “combinar, misturar e talvez interpolinizar a FC e o mainstream” (palavras de Roberto de Sousa Causo). Esse diálogo é de fato possível? A dificuldade maior está em convencer o mainstream, com seus preconceitos, da riqueza desse diálogo? Ou, por outro lado, em encontrar na ficção científica a qualidade e a profundidade literárias exigidas pelo mainstream? Existe o Guimarães Rosa da FC?
NELSON: A unanimidade nacional, em outras palavras, o Machado ou o Rosa da FC brasileira ainda não apareceu. Ainda… Na adolescência, no interior de São Paulo, eu era apaixonado pela prosa de Ray Bradbury e Isaac Asimov. A ficção científica era meu gênero literário predileto. Lia com prazer tudo o que encontrava, incluindo os divulgadores científicos mais carismáticos, como Carl Sagan e o próprio Asimov. Depois, já na capital e na faculdade, abandonei essa subliteratura e abracei a grande literatura legitimada pelos círculos acadêmicos. Grande erro. Em vez de somar as duas coisas, fui tolo e troquei uma pela outra. Levei vinte anos para perceber que os melhores livros de ficção científica nada têm que os desabone. Então, já quarentão, voltei correndo para eles, sem abrir mão dos livros canonizados pela teoria literária. O Projeto Portal é parte desse reencontro com um gênero tão rico de possibilidades narrativas. Como autor da corrente principal de nossa literatura, concordo totalmente com Luiz Bras, quando ele diz, em artigo publicado no Rascunho (Convite ao mainstream), que precisamos renovar com urgência nossa palheta temática. A época atual está às voltas com a clonagem, a nanomedicina, a realidade virtual, a inteligência artificial, as neuropróteses, o ciberespaço, e nada disso está aparecendo em nossa literatura. Que desperdício de assunto. O diálogo do mainstream com a ficção científica será proveitoso também para esta, sempre acusada de ser artisticamente superficial e ingênua.
ROGERS SILVA: Sinceramente, uma das melhores novelas (romance? reunião de contos?) contemporâneas que eu li foi a sua Babel Babilônia. Outro livro, este organizado por você, de que gostei bastante foi Cenas da favela: as melhores histórias da periferia. O que explica uma novela e uma antologia tão boas terem tão pouca repercussão? Ou estou enganado?
NELSON: Volto a recomendar O andar do bêbado, que dá uma explicação bastante plausível para o sucesso e o fracasso não só na atividade criativa, mas em todas as atividades humanas. A visão determinística do mercado, errada mas aceita pelo senso comum, afirma que o sucesso é governado principalmente pelas qualidades intrínsecas da pessoa e do produto. Já a visão não determinística afirma que o sucesso é governado por uma conspiração de fatores pequenos e aleatórios, isto é, o acaso, a sorte. É claro que o talento, a persistência e certo carisma social aumentam as probabilidades de sucesso de qualquer escritor, mas não são decisivos. Com sorte você atravessa o mundo, sem sorte você não atravessa a rua, disse meu xará, Nelson Rodrigues.
ROGERS SILVA: Embora indiscreta, aí vai uma pergunta que interessa a todos do ramo: quanto você ganha aproximadamente, por mês, com a literatura? Direitos autorais, palestras, promoção de eventos, organização de antologias, consultoria e supervisão editorial, oficinas de criação literária… Ou, se preferir, quanto alguém, após tanto tempo de dedicação e com seu gabarito, conseguiria ganhar com a literatura?
NELSON: Dias atrás, num café, eu conversava com uns amigos sobre isso: o tabu do salário. No Brasil, talvez em todo o Ocidente, talvez no mundo todo, ninguém revela quanto ganha. Não sem tortura. E, se revela, está mentindo, com certeza pra mais. Prefiro manter a tradição e calar sobre esse assunto. Não me obrigue a mentir (rs). Se forçada, minha modéstia diria que recebo muito bem pelo meu esforço diário. Mas minha vaidade diria que recebo bem menos do que mereço. É a constante oscilação.

RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Com a internet, de uma década para cá, muitos escritores tiveram a oportunidade de revelar o seu trabalho, tanto por meio de blogues quanto de inúmeras revistas eletrônicas, sites, portais e redes sociais, alguns conseguindo migrar para o papel, publicando seus livros. Como você vê, de uma forma geral, o resultado disso, principalmente o tipo de literatura que vem sendo feita no país?
NELSON: A internet facilitou enormemente a publicação e a divulgação de textos literários. Mas ainda não criou uma linguagem literária própria, como muitos estudiosos queriam e esperavam (eu também). Lembro que, antes mesmo da internet, quando naveguei pela primeira vez num CD-Rom, clicando nos links e saltando de um lugar para outro a meu bel-prazer, logo pensei no célebre O jogo da amarelinha, do Cortázar. Imaginei que em pouco tempo os escritores estariam explorando essa nova possibilidade, tirando partido do hiperlink, agregando imagens e sons a seus escritos, mas isso não aconteceu. Eu mesmo tentei escrever uma novela diretamente na rede, abusando dos links, mas, ao perceber que dava muito trabalho, em pouco tempo já estava de volta ao papel. Babel Babilônia é essa novela. O saldo é o seguinte: apesar de não ter proporcionado uma renovação da linguagem, a internet facilitou muito a publicação e a divulgação dos textos dos novos autores, inéditos em papel. O formato blogue é um dos mais atraentes e populares dos últimos tempos, na cultura humana. A razão disso eu comento mais demoradamente no posfácio da antologia Blablablogue: crônicas e confissões.
RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Ainda dentro do contexto da pergunta anterior, de que forma você avalia o papel da "mídia" tradicional em relação a essa nova geração que se criou e se inventou através da internet?
NELSON: A expressão mídia tradicional refere-se a uma instituição feita de muitas camadas: jornais e revistas de alta e baixa circulação, tevê, rádio, certos circuitos universitários, boletins das academias de letras, e até blogues e sites. Não gosto de generalizar, mas, ser for inevitável, eu diria que as camadas mais altas, oficiais, ainda estão presas como de costume à tradição literária, ligada ao papel. Se não sair em livro de papel de celulose, não vai interessar, não será resenhado. Apenas as camadas mais alternativas, de alguns blogues e sites menos convencionais, estão atentas ao aqui-agora da literatura feita diretamente na internet. Mas tudo indica que isso vai mudar, pois chegou o e-paper. Comenta-se que nos próximos anos o papel digital, esse usado no Kindle e em outros e-readers, vai provocar no mercado editorial uma crise semelhante à do mercado fonográfico, com a chegada do arquivo mp3. É claro que o livro de papel não vai desaparecer, mas vai virar artigo de colecionador, como o disco de vinil.
RODRIGO NOVAES DE ALMEIDA: Por que a ficção científica?
NELSON: Esse gênero oferece bastante matéria-prima, e não está distante do gosto do brasileiro. Ele faz fronteira, de um lado, com o fantástico e, do outro, com o realismo mágico, muito apreciados pelo leitor culto tupiniquim. E as dezenas de ramos que saem do galho da ficção científica oferecem um leque de caminhos muito diferentes, um para cada paladar. Está tudo pronto para o casamento fecundo do mainstream com a FC. Falta apenas que a elite literária reveja seus preconceitos e perceba que qualquer possibilidade de renovação da prosa passa pelos gêneros ditos inferiores. O Projeto Portal e a coletânea Futuro presente propõem isso. É certo que vários autores da corrente principal de nossa literatura já estão flertando com a space opera, o ciberpunk, o pós-humano ou o pós-apocalipse. Esses são ramos muito apreciados da ficção científica. Porém alguns cuidados precisam ser tomados, do contrário as conseqüências podem ser desastrosas. Recomendo a leitura do artigo Cinco erros, publicado no Rascunho. Luiz Bras pediu a Roberto de Sousa Causo, Ataíde Tartari e Fábio Fernandes — três dos nossos melhores autores de ficção científica — que apontassem os cinco pecados mais comuns que os escritores do mainstream cometem ao escrever FC.

HOMERO GOMES: Uma provocação, Nelson. Você já afirmou que “a literatura não é apenas a arte do absurdo. É, antes de tudo, a arte do inútil. A ela só se dedica o rebotalho da humanidade.” Por que, então, a arte ainda existe? Por que você ainda escreve e orienta escritores estreantes em suas oficinas se “a arte é inútil”?
NELSON: Ironia pura. Eu não acredito realmente que a literatura seja a arte do inútil. Mas conheço inúmeros indivíduos que acreditam. Pessoas práticas e atarefadas, boas em contabilidade e marketing, para quem tempo perdido é dinheiro perdido. Então, na crônica da qual você extraiu esse trecho, eu brinco um pouco com os valores, mimetizando diversas vozes, incluindo a de pessoas para as quais qualquer atividade que não objetive o lucro imediato é perda de tempo e dinheiro. Todos estamos carecas de saber que a arte e a literatura não são atividades instrumentais, não são um meio de alcançar outra coisa: bens materiais, prestígio, poder etc. Elas são um fim em si mesmas.
HOMERO GOMES: Dizem que hoje há mais escritores do que leitores. Embora seja uma estimativa mais subjetiva do que objetiva, você concorda que houve um aumento considerável no número de autores? Ou apenas houve um aprimoramento na badalação do mercado editorial, dando mais visibilidade ao número de escritores? Como você vê esse fenômeno?
NELSON: As últimas pesquisas realizadas pela Câmara Brasileira do Livro e pelo Instituto Pró-Livro revelam que aumentou o número de editoras, de títulos publicados e conseqüentemente, acompanhando o aumento da população brasileira, de leitores. Também está ocorrendo a profissionalização de nosso mercado editorial, que, como qualquer mercado numa economia capitalista, necessita de novidades pra sobreviver. A badalação, as premiações, as festas e as baladas literárias, as bienais e as feiras cumprem essa função: apresentar ao público as novidades nacionais e internacionais, os novos autores, o novo livro dos veteranos, os livros e os autores premiados, legitimando-os. Enquanto isso a internet segue emulando o mundo-do-lado-de-cá da tela do computador. Toda essa movimentação trouxe novo glamour à atividade literária e certamente está contribuindo para o aumento do número de poetas, contistas, cronistas e romancistas.
HOMERO GOMES: Roberto Causo disse que você tem se firmado como uma das lideranças mais interessantes dentro da literatura neste início de século 21. Você tem essa consciência? Todo líder é no fundo um guia. Então nos diga que caminho, que destino você tem imaginado para a literatura brasileira, para a Geração Dez, Vinte, Trinta…
NELSON: Causo tem sido extremamente generoso, apoiando o Projeto Portal e outros projetos, indicando leituras interessantes e divulgando a FC brasileira no exterior. Mas eu vejo minha liderança como algo incidental, de curto alcance. O tempo das grandes lideranças e dos movimentos artísticos passou, não passou? Ou está voltando? A História é cíclica? Na verdade, todo líder é no fundo um egocêntrico. Por isso é preciso tomar muito cuidado com eles. Mesmo que quisesse liderar pra valer, eu não tenho todas as qualidades necessárias pra isso: carisma, um programa consistente, prazer em estar com as pessoas, paciência ilimitada para suportar a birra e a ciumeira dos liderados, inteligência. Tenho só a inteligência (rs). E certo prazer em reunir escritores em projetos coletivos. E algum orgulho. Que me permitem trabalhar no máximo de minhas forças e, se necessário, defender meu território literário do ataque de outros primatas neuróticos que às vezes tentam maculá-lo.
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* Um exemplar do Portal Neuromancer (org. Nelson de Oliveira) será sorteado, no dia 05/02, entre os que comentarem a entrevista, independente do teor do comentário. Em último caso, é só gritar "Eu queeeeeeero", ou coisas similares, que automaticamente estará participando do sorteio. Boa sorte!
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