6 de jan. de 2010

C.T.I.

Por Bruna Mitrano

Não era pra eu estar aqui. (A luz não apaga nunca). Não era pra ninguém estar aqui. (Nada de cânticos celestiais). Mas estamos. (Esse pi-pi-pi eterno). Então, fechemos os olhos, todos, de uma só vez, pra enxergarmos mãos dadas, pra fazermos o mesmo pedido, pedir a quem?, não importa, juntos, distantes, cada um em sua cama branca, tudo branco.
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Assim que acordei, pela primeira vez nesse lugar, depois de dormir não sei quantas horas ou dias ou séculos, esse senhor deitado ao meu lado direito puxou conversa. Disse-me que sairia logo. Isso foi anteontem. Ontem ele perdeu o movimento do corpo. Hoje ele está desse jeito. É triste ouvir a filha dizer “eu sei que você está me ouvindo”. Ela chora falando “pa-pai” (com essa pausa de afeto).
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A senhora da frente não larga aquele livro (capa dura virando refeição pra traças, fita durex nas juntas). Queria eu ter um livro velho recheado de ácaros para abafar o cheiro de éter. Mal sabe a tal senhora que a invejo, não sei se pelo livro ou se pelo cuidado do alguém que trouxe o livro. “O livro”, ainda não descobri o título. Suponho que seja um romance naturalista daqueles que a gente passa a vida lendo. Penso num autor português; vai ver que é porque os olhos miúdos da senhorinha lembram os da minha avó, que quando podia lia Eça e Camilo Castelo Branco.
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Agora tem esse silêncio no lado esquerdo. Levaram dali o carinha esquizofrênico. Sei lá se ele era esquizofrênico, sei que xingava todo mundo de filho da puta, menos eu, eu era puta mesmo. Ele fedia. O fedor ficou. Daqui a pouco vão trazer para o lugar que era dele um motociclista todo quebrado, que vai acabar com minha paz, vai gritar por tudo, até para mijar.
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Ouço dizerem que lá fora cai um dilúvio. E eu presa na arca, sem tempo bom ou ruim, sem ar morno na cara. Aplicam uma injeção no tubinho transparente que está devidamente acoplado ao meu corpo e eu sinto o cheiro do mato que nasce nas fendas da calçada rachada da minha casa, mato molhado, dilúvio. “Não me deixa morrer”, peço agarrando o jaleco da doutora Márcia. Dra. Márcia Munis é o que vejo, bordado num bolso, minha cara está bem nos peitos dela; a médica não tem cabeça, mas se tem coração, peço.
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Acordo outra vez. A senhora de olhos miúdos não está mais na minha frente. Pena não ter deixado o livro. As pessoas ficam pouco tempo aqui, já percebi. Quero sair logo, seja como for. Mentira. Quero sair viva. Aprendi a ter medo da morte. Dizem que ela é bonita. Quase nos encontramos outro dia. Não cheguei a vê-la, mas já sei de antemão que não faz meu tipo. Comigo não tem essa de querer experimentar sensações novas, nem aquela ladainha de superação. Já superei o sol de janeiro, o cheiro dos postos de gasolina e a programação de férias da tevê; é o suficiente. Pra que me doar mais?, peço tão pouco em troca, quero quase nada, só o meu corpo dormindo por conta própria na minha cama que espera desarrumada por mim (espera por mim, desarrumada por mim). Cama de verdade. Era pra eu estar no meu quarto agora, não era para eu estar no CTI. Aliás, não era pra ninguém estar no CTI.
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Bruna Mitrano - Tem 24 anos e mora no "velho oeste carioca". Trabalhou tanto em micropaleontologia como em alfabetização de idosos. Hoje não faz muita coisa além de ler, ouvir música e observar pessoas desconhecidas.
Teima em manter o http://www.deliriolilas.blogspot.com/. Ah: e nunca publicou um livro.
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