Por Daniel Lopes
-(Os Malaquias, de Andréa del Fuego)
Toda menina que começa a escrever no Brasil tem sobre os ombros um imenso espectro observando a tela do computador ou o caderno: o espectro de Clarice Lispector. É fatal, sempre que um crítico que trabalha de maneira comparada tiver em mãos o trabalho de uma jovem escritora, vai buscar conexões e convergências com o trabalho da nossa maior literata. Mesmo porque Clarice é imensa, seus tentáculos se movimentam para todos os lados e alcançam os textos mais recônditos. Eu bem que poderia começar esta resenha comparando a escritora mineira Andrea del Fuego à Clarice que, a seu modo, fez literatura regional em A hora da estrela. Eu bem que poderia começar o texto com a frase de Clarice que se aplica tão bem à literatura de Andrea: “Se for pra escrever, que não se esmague com palavras as entrelinhas”, mas tudo isso seria forçar a barra e eu quero fugir do estereótipo. De modo que, se a ideia for buscar analogias e estabelecer uma genealogia literária a partir de outros escritores, Andrea seria uma mistura do também mineiro Murilo Rubião com o alagoano Graciliano Ramos, ou com o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Agora tem o seguinte... A narrativa que, a meu ver, é a avó do primeiro romance da escritora mineira é Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo.
- Vamos por partes, como diria Jack.
Os Malaquias conta a história de três crianças, moradoras de uma cidadezinha chamada Serra Morena, que são separadas depois que um raio mata seus pais. Basicamente, o enredo do romance é este, entretanto o tratamento dado pela autora a este enredo simples é que são outros quinhentos. Andrea é concisa, dura, parece ter recebido uma educação pela pedra na escola das facas de João Cabral. Pau é pau, pedra é pedra. Em seu estilo não há espaço para adjetivos e a elipse de artigos e pronomes é freqüente. Qualquer semelhança com Graciliano Ramos seria mera coincidência, ou a linguagem econômica é fruto dos twitteres, facebooks e blogues? Só a autora mesmo pra responder. Eu, contudo, acredito que essa forma de escrever se associa ao regional, principalmente por causa da musicalidade cortante e da prosódia sertaneja de sua narrativa. Apesar de concisa, Andrea não abre mão da poiesis, ela, a poesia, flutua sobre suas palavras secas e certeiras leve como “a memória minúscula e transparente” da defunta Geraldina. Um post do facebook dificilmente alcança a força estética que encontramos aqui.
Outra característica presente n’Os Malaquias que não pode ser deixada à margem é a presença do insólito, do absurdo, em meio ao real. Como afirmava Alejo Carpentier na teoria do Real Maravilhoso, o insólito na América Latina é cotidiano, devido principalmente à mestiçagem. A Geraldina d’Os Malaquias é filha de índios, ligação entre o mundo dos vivos e o mundo xamânico dos espíritos, arquétipo do bode expiatório em Serra Morena, cujo sacrifício é exigido na tessitura do romance e em quase todas as sociedades primitivas. É mesmo cotidiano, o insólito, abaixo da linha do equador. Exatamente como na Comala de Juan Rulfo, na Serra Morena de Andréa, mortos e vivos caminham lado a lado, juntos, na mesma cidade. Ambos, mortos e vivos, são formados pelas mesmas moléculas que ora estão em um, ora estão em outro. Morto/Vivo, Vivo/Morto. É possível uma analogia com O Pirotécnico Zacarias, do mágico mineiro Murilo Rubião?
Um ponto que chama a atenção no romance é a humanização dada aos objetos e a fusão dos personagens ao ambiente, como se um fosse parte integrante do outro. Imagem muito forte que fica na mente do leitor, ocorre quando o embrião de Maria, mulher de Nico, um dos órfãos, é desmanchado pela água e agregado à entidade Geraldina, ao mesmo tempo em que essa, com a mudança de cenário (rural/urbano/progresso) se transforma também, dando uma impressão de imortalidade aos seres. A morte aqui seria apenas uma mudança de estados, do sólido para o gasoso, do gasoso para o líquido (Quando Geraldina está por perto o leite não ferve). De certo modo é uma ideia encontrada também no Paraíso Líquido, de Luiz Brás: uma morte filosófica, como no mito do eterno retorno. De alguma forma, Geraldina, algum dia, depois de todas as combinações possíveis dos átomos, retornaria à vida.
A ambivalência, característica dos grandes textos literários, também dá as caras por aqui. Um dos personagens é anão. Quando tal fato é constatado o médico declara: “...os antepassados explicariam a inibição das glândulas de crescimento. Ou o problema pode ter se iniciado nele mesmo. Que Deus não me ouça, mas já ouvi casos em que a mulher adúltera é castigada com um filho defeituoso”. Houve adultério ou não? É o embate entre a ciência e o misticismo. Mais tarde Júlia, também dá a luz a um filho anão, como os irmãos Malaquias foram separados muito cedo, nem ela nem o marido sabem que o irmão também sofre do mesmo problema. A dúvida a respeito da traição se instaura outra vez e desemboca no... Ops... Não contamos mais nada porque senão perde a graça.
Estamos nos aproximando do final e toda crítica que se preze tem um senão. O senão em Os Malaquias é dúbio, tanto pode ser encarado como uma qualidade, quanto como um defeito. Como tudo o mais na vida, depende do ponto de vista. Andrea trabalha como um relojoeira, cada palavra está no seu exato lugar, tudo funciona milimetricamente conforme o planejado, percebe-se que o romance foi bem arquitetado previamente. E qual é o problema com isso? - Vocês me perguntariam. Problema nenhum, porque é literatura e não vida. Na vida as pessoas tropeçam, caem, levantam, pensam fazer uma coisa e fazem outra. Numa entrevista recente, Andrea confessa que pensou ter achado o mapa da mina quando descobriu a escaleta. Pode ser, mas ela, a escaleta, ao mesmo tempo em que sustenta o texto e aponta um caminho, de certa maneira, também engessa a escrita e limita a fruição, o som, o jazz, a irrupção do subconsciente, tão necessária para quem trabalha com um universo mágico.
Poético. Ótimo. Mágico. Transcedental. Insólito. São todos adjetivos que cabem a Os Malaquias, mas que não apareceriam de modo algum no corpo deste romance. Um grande livro que renova o realismo mágico e que aponta uma forma de regionalismo possível para o século XXI. -
Daniel Lopes tem textos publicados nas revistas literárias Amálgama, Meio Tom, Germina e Escritoras Suicidas. Publicou em 2008 o romance É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, em 2010 publicou o livro de contos Pianista boxeador. Foi vencedor do prêmio Valeu Professor 2010, categoria conto. E-mail: danielopes26@yahoo.com.br