26 de mai. de 2010

A ‘iniciação’ de Fernando Pessoa

Por Rogério Mathias Ribeiro
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Abriremos este artigo com a última definição de Fernando Pessoa acerca da sua posição frente ao ocultismo, contida numa carta ao crítico Adolfo Casais Monteiro, carta que provém do último ano de vida do poeta (14/01/1935). Em respeito a desejo expresso do autor, não se publicou em vida dele a confissão do seu credo ocultista; apareceu pela primeira vez dentro da grande biografia de J. G. Simões. O trecho mais importante diz:
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“Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subutilizando-se até chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não... Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível de bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a “iniciação” ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem iniciática nenhuma. A citação, epígrafe do meu poema “Eros e Psique”, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em Latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o texto do Ritual, pois não se deve citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.”[1]
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O que merece nosso interesse na leitura dessa carta é, em primeiro lugar, a concepção de um reino hierarquicamente ordenado que, embora invisível, aparece como mais real que a existência terrestre. A mesma concepção aparece em poemas esotéricos de Pessoa e em odes de Ricardo Reis; as obras de Caeiro e Campos estão, aparentemente, livres de influências teosóficas diretas.
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No que se refere aos três caminhos que a carta de Pessoa define como acessos ao mundo do oculto, pelos próprios motivos citados pelo autor, o alquímico é o preferido. A transformação da personalidade que este caminho lhe prescrevia correspondia à sua tendência para o desdobramento do Eu e levava-o a uma fusão original de ciências ocultas e poesia. J.G. Simões interpreta o caminho alquímico do autor com as seguintes palavras:
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“Ora, quando Fernando Pessoa declara que o caminho alquímico é aquele em que, mercê da transmutação da personalidade, se prepara a comunicação com o Ente Supremo, muito bem pode querer justificar a sua concepção de poesia – o “fingimento”, produto de uma decomposição, transmutação, na criação, ou seja, os heterônimos.”[2]
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O poeta encarou, ao que parece, o pequeno drama dos heterônimos como uma cristalização de Eus parciais superterrestres num Eu terrestre e passageiro. O caráter hipotético desta afirmação permite, no entanto, a pergunta: podemos falar a sério de uma identificação de Pessoa com noções teosóficas ou elas limitaram-se a ser para ele um motivo de inspiração para a sua poesia? J. G. Simões considera que se tratou apenas de matéria-prima inspiradora, porque, em 1926, com a morte da mãe, Pessoa teria se comovido de tal forma que, daí para diante, a desconsideração da importância da morte pelos teosófos já não o podia convencer, distanciando-o interiormente da teosofia conforme sua tendência psicológica. A esta interpretação, opõem-se, porém, as confissões da carta a Casais Monteiro, que testemunham sua fidelidade para com as concepções básicas da teosofia; como o próprio Casais Monteiro comenta:
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“O ocultismo de Pessoa é, em meu entender, ainda uma construção racional - o que não impediria de corresponder a um anseio essencial, doloroso e imenso. A visão de Pessoa não é de um iluminado, mas a dum racionalista, até por vezes dum positivista. E se ele encontrou no ocultismo o que parece ter sido um dos interesses fundamentais do seu espírito... quer-me parecer que isso deve precisamente ao caráter de construção racional oferecido pelas vastas perspectivas da ciência do oculto...”[3]
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Yvette Kace Centeno, que até hoje estuda diretamente o espólio de Fernando Pessoa, em especial o material relacionado ao ocultismo, anos depois descobre que o interesse de Pessoa pela teosofia irá acompanhar o poeta até o fim de sua vida, ao contrário do que acreditava Simões. A pesquisadora explica como o poeta faz da heteronímia um caminho alquímico:
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“Trata-se para ele de dar corpo a vários corpos, a partir de um corpo só, de dar vozes a várias vozes, a partir de uma voz só. A iniciação, única e sempre a mesma, que encontramos no pensamento filosófico como na atividade literária, é a do desdobramento que na Criação se verifica desde o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, kabalistas, alquimistas – todos que se dizem herdeiros de uma tradição hermética. Desdobramento, multiplicação, que só depois de assumidos e esgotados permitem a unidade.
O poeta, adepto por excelência, tem o desejo (ora mais ora menos reprimido) desse primeiro tempo de androginia perfeita. Mas só quando esgotar o mundo do possível pode sonhar recuperá-lo.”
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Para Fernando Pessoa, o desdobramento da personalidade em diversos heterônimos será algo necessário; somente depois de sentir tudo de todas as maneiras, de ser vários, ele poderia chegar a uma unidade. Esse desdobramento pode estar ligado ao caminho alquímico, seria um processo alquímico, um desenvolvimento e um caminho evolutivo, um exercício espiritual não confessado[5], diz Centeno.
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Mas não só a heteronímia pode fazer parte dessa alquimia. Os símbolos, parte do projeto poético e outros elementos talvez se enveredem por esse caminho também. É interessante, antes de prosseguir, porém, conhecer a gênese da alquimia na filosofia ocultista de Fernando Pessoa.
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Consideramos que é a ligação com a teosofia que leva o poeta ao caminho alquímico, e este lhe fornece princípios úteis para a justificação a posteriori da sua poesia. Pelo caminho alquímico, Pessoa pôde entrar no laboratório da poesia. Simões menciona suas leituras de Hermes Trismegisto e descreve etapas do procedimento alquímico mencionadas neles: Segundo Trismegisto existiam diversos processos para se obter o oiro: a calcinação, a putrefação, a solução, a destilação, a conjunção, e, finalmente, a fixação.[6] Ao designar a poesia como laboratório alquímico de Pessoa, Simões não conhecia ainda um apontamento do poeta sobre Goethe que confirma sua tese, fragmento de ensaio que Pessoa queria escrever sobre o centenário de Goethe em 1932: O Génio, reza o trecho mais importante, é uma alquimia. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefação, 2) albação, 3) rubificação, 4) sublimação. Deixam-se apodrecer as sensações; depois de mortas enbranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão.[7] Ao que se vê, Pessoa descreve o procedimento do poeta por analogia com o do alquimista.
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A estreita concatenação de teosofia, poesia e teoria estética no pensamento de Pessoa manifesta-se com maior claridade nos apontamentos em prosa do autor sobre temas ocultistas que se encontram no espólio. A intenção de expor e discutir temas ocultistas faz supor que não importava muito ao autor tornar-se profeta destas concepções, ou identificar-se completamente com elas. O estilo dos fragmentos mostra que o poeta pensava em transformar a sua extensa leitura dos escritores ocultistas em ensaios de resumo. O vasto material encontra-se em parte manuscrito, em parte datilografado; tem tantas lacunas que será difícil reuni-lo para os fins de uma edição legível. Mas os círculos temáticos estão claramente definidos; os fragmentos trazem os títulos: Essay on initiation, The way of serpent, Subsolo, O governo dos 300, Átrio, Ocultismo, Rosa-Crucianismo, Maçonaria e Cabala. A maior parte desses fragmentos não importa para nosso fim: a exposição da teoria poética de Pessoa. Das doutrinas ocultistas que o autor discute, só algumas entraram na sua poesia. Para os nossos estudos, escolhemos aquela parte dos fragmentos ocultistas que aparecem em forma de poesia ou sobre algumas concepções de Fernando Pessoa.
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Um documento capital que ajuda melhor do que qualquer outro a testemunhar a analogia entre teosofia e doutrina artística provém do Essay on initiation e compara a hierarquia dos iniciados com a hierarquia dos poetas. Nessa analogia, Pessoa compara os graus dos iniciados com o dos poetas; os dos iniciados ascenderiam até à verdade, enquanto os poetas atingiriam a escrita da grande poesia. Na escala dos poetas, Pessoa considerava alguns degraus dispensáveis. O grau mais elevado da escala dos poetas, seria o de Superpoeta – seria uma concepção utópica segundo o próprio Pessoa: A fusão de toda poesia épica e dramática, em algo para além de todas elas... Comenta ainda: A fusão de toda poesia lírica, épica e dramática nagulma coisa que está para além das três, é um feito que ultrapassa o nosso entendimento...[8] Este Superpoeta anuncia-se duas vezes antes de encontrar a sua motivação teosófica: nos ensaios sobre a “Nova Poesia Portuguesa” de 1912, adotando a figura do Super-Camões, e no Ultimatum de Álvaro de Campos, como o Poeta Proteus com sua corte de 20 subpoetas. As duas imagens circunscrevem o máximo daquilo que Pessoa teria tencionado atingir, ou seja, fundir as poesias épica, lírica e dramática para algo acima de todas elas e ser um poeta de alto valor cercado de outros grandes poetas (heterônimos).
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Pessoa ainda afirma que aos poetas de graus mais elevados, cita Shakespeare, e provavelmente considera a si próprio como um destes, basta o “génio” para abrir um canal de acesso ao mundo dos espíritos. Essa afirmação explica a resposta dada a Casais Monteiro sobre ser membro de nenhuma ordem iniciática. Não tinha precisão nenhuma disso – estava convencido de fazer parte dos iniciados graças à sua categoria poética. Em Essay on initiation, encontraremos vários conceitos sobre rituais, iniciações e poesia.
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Comparando a hierarquia dos iniciados com a dos poetas, utilizando a poética para, a partir dela, transmutar-se em muitos e para de certa forma preparar-se para voltar a ser “uno” com um grau elevado de perfeição, afirmando que os graus elevados levam ao contato com mundos superiores, podemos enxergar um Fernando Pessoa consciente do papel que a poesia ocupa em um caminho evolutivo, de transformações do ser. Acreditamos que Fernando Pessoa considerava o caminho poético, a manifestação intrínseca, como aquele que deveria ser seguido para atingir seus anseios de transformação da alma a partir da transformação de sua personalidade. Pessoa através, de sua poesia, poderia trabalhar em sua própria alquimia e dessa forma subir a montanha.
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1. MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Organização de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1985, pp. 235 e 236.
2. SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. História de uma geração, 3ª Ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1973, p. 247.
3. MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Organização de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1985, p. 274.
4. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.10.
5. CENTENO, Yvette Kace. O pensamento esotérico de Fernando Pessoa. Lisboa: Publicações Culturais Engrenagem, 1990, p.11.
6. SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa. História de uma geração, 3ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1973, p. 246.
7. PESSOA, Fernando. Obra em prosa. Organização, introdução e notas de Cleonice Berardinelli, Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguillar, 1986, p. 269.
8. Apud em LIND, p. 279.

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Parte integrante da dissertação de mestrado Esoterismo e ocultismo em Fernando Pessoa: Caminhos da crítica e de poética, de Rogério Mathias Ribeiro.
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Rogério Mathias Ribeiro - Graduado em Letras (Português/ Literatura) pela Uerj, especialista em Literatura Portuguesa pela Uerj e Mestre em Letras (Literatura Portuguesa) pela UFF. Taurino de 37 anos, carioca, residente no Rio de Janeiro-RJ, torcedor do Botafogo e professor de Ensino Médio, estudioso da Literatura Portuguesa e do Ocultismo. Contato por e-mail: roger7332@hotmail.com