18 de ago. de 2025

O caso do bar

Por Ricardo Novais

Entrei em um bar e, enquanto aguardava amigos para o happy hour, fiquei a observar dois homens que discutiam sobre política na mesa em frente. Discutiam tão alto que era possível ouvir com exatidão o motivo do entrave.

__ Você é idiota, Carlos! É claro que o governo neoliberal traz progresso ao país...

__ Não, senhor! O neoliberalismo enriquece uma casta e o povão fica na merda! O nosso país deveria seguir a política dos países nórdicos...

Era uma discussão tão superficial que logo me desinteressei. Após um quarto de chope, os meus amigos chegaram. Alguma bebida, risos e piadas ao estilo do mestre Ary Toledo depois e eu já estava meio bêbado; meio bêbado é um eufemismo, caro leitor, já que não existe ebriedade pela metade.

__ Então você não acha que o campeão de 87 é o Flamengo? – questionei um.

__ Claro que não, Heitor! É o Sport do Recife...

Embora fossemos de meia-idade, a nossa discussão era sobre futebol e coisas relacionadas ao ambiente de garotos da 5ª série.

De repente, olhei para frente e vi os dois camaradas que estavam discutindo política saindo do bar, juntos e abraçados, porta fora. A dona leitora bem sabe, a curiosidade alheia é a salvação do tédio do espelho. Então chamei um garçom e lhe perguntei se sabia quem eram aqueles dois.

__ Não sei, senhor. Mas acho que se conheceram hoje. Eles chegaram antes do senhor... Bem, quando eles chegaram, eu os ouvi falando... Apresentaram-se formalmente... Acho que tinham marcado o encontro pela internet. Por quê?

__ Por nada.

Acabei de beber, dei um abraço nos meus amigos e saí do bar. Poucos metros, vi alguém caído na calçada. Aproximei-me, já havia umas cinco ou seis pessoas em volta. Reconheci o sujeito agonizante na calçada: era um dos homens que estava no bar discutindo política, já moribundo; não tinha sinal do outro.

Um senhor velho, de barba branca bem rala, que parecia velar o local, abaixou e sumiu com o relógio do morto. Veio mais gente; moradores em condição de rua, seguranças de boates, funcionários do metrô, executivos que estavam saindo do trabalho, duas mulheres da vida e um travesti alto.

A esta altura, o morto já tinha perdido a carteira, o celular, a gravata e a honra política. Chegou a polícia. A polícia chamou o SAMU, mas depois disseram que iam aguardar o carro do IML. O cadáver, mais político do que nunca, aguardava o rabecão e o seu esquife.

Passei bem um quarto de hora a admirar o espetáculo da morte na república. Depois me afastei, devagar, reflexivo de quem seria o cadáver, de que lado do Fla-Flu ideológico ele se encaixava, em vida e em morte; cheguei em casa e fiquei o resto da noite acordado. Procurei e procurei uma posição política e de ética em uma rede social. Não achei nada além de julgamentos republicanos, esparsos e rancorosos. Perto de amanhecer, eu desisti, e fui ler as notícias esportivas.


Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo tempo; o último gole é sempre a saideira.

12 de ago. de 2025

As folhas se perdem – resenha do filme “Meu pai”

Por Gustavo Coelho 

 

Diretor: Florian Zeller

Roteiro: Florian Zeller e Christopher Hampton

Elenco: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Mark Gatiss, Imogen Poots e Rufus Sewell

Lançamento: 2020 


Poucos filmes ousam ir além de contar uma história. "Meu Pai" (The Father), dirigido por Florian Zeller, é uma dessas raras e preciosas obras: nos faz sentir o filme na nossa própria pele. Mais do que um drama sobre a velhice e a doença, trata-se de um thriller psicológico que nos aprisiona no labirinto de uma mente que se desfaz, transformando a experiência passiva de assistir a um filme em um exercício visceral e inesquecível de empatia forçada.


Sinopse (sem spoilers)

 

A trama, em sua superfície, parece simples. Acompanhamos Anthony (Anthony Hopkins), um homem idoso, orgulhoso e teimoso que mora em Londres e rechaça todas as cuidadoras que sua filha, Anne (Olivia Colman), tenta contratar. A situação se agrava quando Anne lhe dá a notícia de que está de mudança para Paris, deixando Anthony diante do desamparo iminente.


O que torna o filme genial é como a história se desenrola. A narrativa abandona a linearidade e adota a perspectiva confusa e fragmentada de Anthony. Nós, como público, somos trancados dentro de sua mente. O seu apartamento, nosso único cenário, muda sutilmente de uma cena para outra; móveis mudam de lugar, rostos de pessoas se alteram, e conversas se repetem com variações perturbadoras, nos deixando tão desorientados quanto o protagonista. Tentamos desesperadamente montar o quebra-cabeça, apenas para descobrir que as peças não se encaixam, pois a realidade de Anthony não obedece mais às regras do tempo e do espaço.

 

Eu acho que estou perdendo minhas folhas.” – Anthony

 

 A importância de "Meu Pai" transcende o cinema. Ele serve como um espelho doloroso para uma realidade que milhões de famílias vivenciam diariamente. Em um mundo que envelhece, lidar com pais e avós que sofrem de demência é um cotidiano para muitos. O filme é uma ferramenta poderosa para a compreensão, pois ele inverte a perspectiva: em vez de focarmos apenas na dor e frustração do cuidador, somos forçados a entender a lógica por trás do comportamento do enfermo.

O filme nos mostra que a teimosia, a desconfiança e a agressividade de Anthony não são maldade, mas sim reações de medo e confusão de um homem que sente o chão desaparecer sob seus pés. Para qualquer um que já teve que cuidar de um parente nessa condição, a paciência e o amor de Anne, misturados à sua exaustão e tristeza, são um retrato fiel e comovente. O filme nos conecta com o medo universal de perdermos nossas faculdades mentais, nossa identidade e, por fim, nos tornarmos um fardo para aqueles que amamos.

A profundidade do filme não é consequência apenas de seu tema, mas também de sua execução impecável, que desperta fortes sentimentos no espectador por três motivos principais:

 

1.     A cinematografia subjetiva: A genialidade de Zeller foi usar a própria linguagem do cinema (edição, design de produção, roteiro) para simular a demência. Não estamos vendo um filme sobre um homem confuso; nós estamos confusos com ele. O apartamento que se transforma sutilmente é o nosso labirinto. As trocas de atores para o mesmo papel nos fazem duvidar de nossa própria percepção. Essa armadilha narrativa nos impede de ser observadores passivos e nos tornamos participantes da angústia de Anthony.

 

2.     A performance monumental de Anthony Hopkins: O ator entrega o que é, talvez, a maior atuação de sua carreira. Ele não interpreta um doente, mas um homem completo em processo de desintegração. Em um piscar de olhos, ele transita do charme intimidador à raiva infantil, da lucidez cortante ao pânico aterrorizado. Vemos lampejos do homem brilhante que ele foi, o que torna a sua decadência ainda mais trágica.

 

3.     O desmonte da identidade: O filme desconstrói metodicamente tudo o que define uma pessoa: seu lar, suas memórias, seus relacionamentos e sua noção de tempo. A cena final em que Anthony, reduzido a uma vulnerabilidade infantil, chora nos braços de uma enfermeira chamando pela mãe, é o ápice dessa demolição. É a representação crua da perda do "eu". 

"Meu Pai" é uma obra-prima sobre a fragilidade da mente humana. A frase final de Anthony, "Sinto que estou perdendo todas as minhas folhas", é uma das metáforas mais belas e dolorosas do cinema para a perda da memória e da identidade. As memórias são as folhas que compõem a árvore de quem somos; sem elas, resta apenas o tronco nu, exposto e vulnerável.

O filme é uma experiência difícil, por vezes claustrofóbica, mas essencial. Ele nos força a confrontar o envelhecimento e a doença não como problemas distantes, mas como uma condição humana fundamental. Acima de tudo, é um chamado à compaixão, um lembrete de que, por trás de um olhar perdido e de uma mente confusa, ainda existe uma pessoa inteira, com uma história rica, mesmo que ela mesma não consiga mais acessá-la.

10 de ago. de 2025

Um retrato da violência estrutural na América Latina

Por Whisner Fraga

 

A escritora mexicana Fernanda Melchor apresenta, em Temporada de Furacões (2017), uma obra de singular intensidade que provoca, inquieta e instiga o leitor desde suas primeiras páginas. Publicado no Brasil pela editora Mundaréu, com tradução de Antonio Xerxenesky, o romance constitui-se como uma imersão vertiginosa nas camadas mais sombrias das estruturas sociais latino-americanas, tendo como cenário a fictícia vila de La Matosa, no interior do México.


 

Embora seu ponto de partida seja o assassinato de uma figura enigmática — conhecida como “a Bruxa”, uma curandeira temida e buscada por aqueles em desespero —, o foco narrativo transcende o mistério criminal. O cerne da obra reside naquilo que o crime revela sobre o contexto em que foi praticado: um ambiente social marcado por misoginia, exclusão, miséria extrema, negligência institucional e normalização da violência.

 

Do ponto de vista formal, Melchor adota uma estrutura narrativa arrojada, baseada em capítulos que se desenvolvem por meio de monólogos contínuos, nos quais diferentes personagens — jovens transgressores, mulheres violentadas, indivíduos à margem da sociedade — compartilham suas perspectivas e vivências. Essa estratégia, próxima ao fluxo de consciência, provoca uma leitura densa e imersiva, conduzindo o leitor ao âmago da psique dos personagens, todos profundamente afetados por traumas, ressentimentos e desesperança. As construções frasais são extensas, entrelaçadas por uma linguagem popular permeada de gírias, o que confere verossimilhança e brutalidade à prosa.

 

Tal estilo constitui, simultaneamente, um dos maiores méritos e desafios da leitura. A complexidade formal exige atenção e disposição do leitor, podendo gerar estranhamento àqueles habituados a formas mais tradicionais de narração. Ainda assim, é precisamente essa estrutura que dá vida à atmosfera opressiva da narrativa — uma ambiência marcada por calor sufocante, angústia latente e iminência constante de violência.

 

Temporada de Furacões delineia um retrato contundente da América Latina periférica. A autora desconstrói discursos hegemônicos de progresso e ordem, revelando as estruturas patriarcais, classistas e machistas que perpetuam a exclusão e a barbárie. Sua crítica é incisiva e fundamentada, evitando, no entanto, julgamentos moralizantes ou soluções fáceis.

 

Os personagens são profundamente complexos, jamais reduzidos a estereótipos. Norma, Yesenia, Brando e Luismi ilustram figuras trágicas que oscilam entre a condição de vítimas e a de algozes, inseridos em um ciclo contínuo de opressão. Não há espaço para redenção ou alívio: é justamente nesse desconforto que reside a potência literária da obra.

 

Importa ressaltar, todavia, que esta não é uma leitura leve. A descrição crua de episódios de abuso sexual, feminicídio e outros tipos de violência pode ser emocionalmente impactante, sendo necessário preparo por parte do leitor. Ainda assim, trata-se de uma obra de relevância inegável, tanto pela sofisticação estética quanto pela urgência temática.

 

Temporada de Furacões constitui-se como uma realização literária de extrema força simbólica e crítica. Fernanda Melchor concebe uma narrativa destemida, visceral e inovadora, que não se propõe a oferecer conforto, mas sim a confrontar o leitor com as realidades mais áridas de uma sociedade marcada por desigualdades, injustiças e abusos. Uma leitura exigente, mas indispensável para quem busca compreender, por meio da literatura, as múltiplas facetas da violência estrutural na América Latina contemporânea. 

 

Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba/MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. É professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.

8 de ago. de 2025

E se não pudermos ver o que elas veem?

 

"Estátuas sobre Túmulos" é um curta-metragem de ficção do gênero drama, com aproximadamente 14 minutos de duração. Inspirado na pandemia de Covid-19 – um momento crucial para a humanidade –, o filme não se propõe a exibir as imagens repetidamente mostradas durante aquele período, mas tratá-la sob um ponto de vista original: em cima dos seus túmulos, uma do lado da outra, duas estátuas de cemitério veem e comentam, perplexas, o resultado de toda tragédia: a morte. O telespectador, assim, relembra e/ou imagina os eventos a partir da perspectiva das estátuas que, através do diálogo que travam durante cinco dias seguidos, narram tudo em detalhe. 

Após um século, as duas estátuas notam o crescente movimento no cemitério e iniciam uma conversa. Antes, os enterros eram esporádicos; agora, a cada dia, deparam-se com múltiplos sepultamentos, alguns à noite, sob a luz do luar e de lanternas. Estaria o mundo em guerra? Mas onde o barulho das bombas? Estariam os mortos deformados? Por que caixões plastificados? São muitas as questões que elas, como observadoras atentas de cada detalhe, tentam responder. 

“Estátuas sobre túmulos”, um curta-metragem de ficção inspirado em um momento crucial para a humanidade, é uma visão crítica e crua sobre a vida humana e a humanidade. A arte, entre outras funções, serve para nos impedir de esquecer o que não pode ser esquecido: a naturalização da barbárie e a importância da vida. Um novo dia, nesse mundo, vale mesmo a pena?


Equipe 

Rogers Silva [roteiro, direção e produção executiva]

Iara Helena Magalhães [direção de arte e assistente de direção]

Thaneressa Lima [montagem]

Lucas Mendonça Cecchino [direção de fotografia]

Cassio Ribeiro Silva [direção de som]

Rubia Bernasci [direção de elenco]

Vitor Fernandes [Estátua-homem]

Anna Júlia EJ [Estátua-mulher]


Saiba onde assisti-lo.

6 de ago. de 2025

Eventos literários e dinheiro público: as mesmas figurinhas carimbadas – Malagueta #40

Por Sinvaldo Júnior e Allyne Fiorentino 

 

E se fizéssemos um experimento “ousado”, digamos assim, e fôssemos ao máximo possível de eventos literários em um ano (bienais, festas, feiras)? Você, versado e conhecedor da verdadeira literatura, teria estômago para isso? Pois é... Nós também não tivemos. Restringimos a dois então, e foi mais do que suficiente. É isso. Estamos cansados precisamos falar sobre essa coisa que se mascara de literatura, mas que está mais para aventuras do cidadão “descontruíde” em terras de lobos.

 

Iniciando pela passada de olho na programação dos grandes eventos literários, dali mesmo a gente tem de decidir se vai encarar as mesmas figurinhas carimbadas, os mesmos escritores, os mesmos assuntos, os mesmos discursos maçantes e massacrantes, produzidos para uma classe média intelectual (será?) e progressista, totalmente alienada da realidade.

 

Sem falar na categoria “escritor(a)” (escritore?) que passou a designar toda e qualquer pessoa ligada a algum segmento da cultura ainda que jamais tenha escrito, agora todos são escritores! Desde os que não conhecem literatura aos que nunca escreveram uma linha de literatura, mas surgem como as atrações principais de um evento literário. Se convidassem o ChatGPT como escritor nato, com certeza seria mais plausível. Em geral, tudo gira em torno do culto à personalidade, à pessoa, à imagem que NADA tem a ver com literatura. Trata-se de eventos com um público que, em hipótese alguma, pode ser contrariado em suas crenças (pretensamente boas para o outro).


 

Um dos maiores eventos brasileiros de literatura, neste ano, tinha como mote a igualdade de raça e gênero, apresentando como justificativa (como propaganda) as figuras da Djamila Ribeiro e Bruna Lombardi. A primeira, ainda que filósofa, negra e mulher, nunca escreveu uma linha de literatura (aquilo que entendemos como arte literária) e nem estamos fazendo, ainda, juízo de valor acerca daquilo que ela escreve, mas pura e simplesmente dizendo que isso não é arte literária; a segunda, não precisamos analisar muito: privilegiadíssima em todos os sentidos, tanto por ser uma figura midiática, oriunda de outros ramos (modelo, atriz, apresentadora), quanto por ser uma mulher branca, lindíssima, oriunda de classe social alta. Nem de longe podemos traçar o cheiro do rastro da sombra do seu envolvimento com literatura...

 

Certo, o mercado está usando a lógica do mercado, usando figuras famosas para atrair público. Mas que público? (Não esqueçamos que o mercado editorial brasileiro, nas últimas duas décadas, diminuiu 44%). Em tempos idos, o público desse tipo de evento era, em geral, conhecido por seu senso crítico, mas se hoje nem nós, que estamos muito mais para amantes de boa literatura do que para críticos, não conseguimos sequer frequentar uma feira sem ter vontade de ir embora rapidamente, imaginem, então, os grandes pesquisadores, os grandes críticos, os grandes escritores...  Mas nosso ponto não é puxar saco da academia, que também (já) criticamos, mas questionar se você realmente acredita que esse tipo de ação causa alguma transformação na sociedade brasileira. É uma pergunta sincera, porque estamos sacrificando talentos que talvez estejam escondidos em prol de uma onda de literatura PANFLETÁRIA. Sim, literatura que serve a um propósito específico e, em geral, sem qualidade. Tudo aquilo que negamos enquanto arte.

 

Será que seguir a nova onda do mercado, sem contrariá-lo minimamente, é profícuo? Um mercado que se apropria de tudo quanto é pauta para transformá-lo em produto. Em produto sem muita utilidade. Em um produto que existe, simplesmente, para estimular o consumo e, logo depois, ser descartado. O cidadão (digo, o cliente) serve apenas para consumir o que o mercado quer que ele consuma. Quer uma prova? Quantos livros você conhece que critica a forma como a nossa sociedade anda tratando a “igualdade” e o “gênero”, um livro que vá de encontro àquilo que os editores esperam vender como politicamente correto, sem se adequar a nenhuma das caixinhas dos sub-representados?  

 

E eis que chegamos a um tópico que a direita adora criticar (quem não tem um tio ou tia que fala sobre a Lei Rouanet como roubo de dinheiro, não é mesmo?). A questão é que sempre vamos defender o uso de dinheiro público para promoção de cultura, claro, pois é isso que mantém a arte viva e as pessoas mais humanas e inteligentes. Entretanto, como bons críticos que somos, jamais defenderíamos algo apenas por ser de esquerda ou apenas por negar o polo oposto.

 

O que se nota é que boa parte dos eventos literários é financiado ou recebe dinheiro público, fruto de impostos de toda a população. Dinheiro que serve para promover meia dúzia de escritores (figurinhas carimbadas) de grandes editoras, com condições suficientes para promover, sem dinheiro público, seus próprios autores e obras. São falsas vítimas da sociedade que estão conquistando privilégios reais. Parece leviano e até acusatório, mas é preciso sair dessa onda "paz e amor" que aceita tudo sem questionar.

 

A conversa é polêmica e exige muito mais tempo e espaço, mas esta é só a primeira da série #Malagueta sobre esse assunto espinhoso. Nós volta(re)mos porque preferimos discussões acaloradas a discussão alguma... Preferimos pensar por nós mesmos do que esperar que o mercado pense por nós. Preferimos trazer à luz nossos incômodos e testar se eles são, em algum momento, também o incômodo de tanto outros... Malagueta arde, mas faz bem ao coração. Não deixe de acompanhar os próximos textos e autores que contribuirão para essa conversa que apenas iniciamos.

31 de jul. de 2025

'Ensaios sobre a total libertação', de Rogers Silva


Ensaios sobre a total libertação é um livro com quatro narrativas. “Drummond no Orkut”, a primeira, é um breve recorte da vida de João, que ao sentar-se num banco de uma praça no intervalo do seu almoço, se depara com um livro. Primeira leitura de sua vida, também será, para ele, um desconcerto e uma descoberta. Por meio das tramas e dos personagens, vai descobrindo-se a si mesmo.

Em “A máquina-führer”, uma máquina, criada por um alemão a mando de Hitler na década de 1930, permite aos dois protagonistas (o Curioso-menor e o Curioso-Maior) irem a qualquer tempo, espaço ou mente humana. O que parece uma aventura despretensiosa possui, na verdade, outro propósito: não deixar que Rogers Silva, autor da história que ora se constrói, ser culpado pela Segunda Guerra Mundial. Os personagens precisam correr contra o tempo, porque senão – se essa tragédia ocorrer (não a Guerra, mas o autor ser o culpado por Ela) – ele se suicidará aos trinta anos.

Em “Ensaio sobre a libertação total”, a partir dos termos “É isso aí” e “Vai lá”, Jéferson cria uma filosofia, retomando clássicos da filosofia antiga e moderna. Porém, a vida transcende e sufoca discursos e filosofias – é o que a crueza da vida vai provar para ele, que precisa resistir tanto aos tempos de ditadura quanto à sua alergia.

Em “antifadorogerssilva@yahoo.com.br” o autor, Rogers Silva, é também o protagonista da história. Alguns anos após a publicação de Paraíso, seu primeiro romance, aos dezoito anos, um fã incomum (um antifã, na verdade) começa a persegui-lo em todos os seus passos. O que parece uma brincadeira, transforma-se numa história de suspense e terror, com todos os clichês possíveis do gênero.

Ensaios sobre a total libertação é uma reflexão não apenas sobre a capacidade da linguagem e da literatura de criar vidas (e da influência da ficção sobre a realidade), mas também uma reflexão sobre a vida real: esta. Valendo-se de temas universais, traduzidos de modo local (na maioria das vezes em espaços bem definidos), esse livro trata de dores, anseios e angústias de todos os seres. É um brinde à literatura-vida.

Ficha técnica

Título: Ensaios sobre a total libertação
Autor: Rogers Silva
Gênero: Contos: Literatura brasileira
Páginas: 130
Formato: 13x18 cm, brochura
Editora Folheando, 2025 (1ª edição)
Contatos: contato@editorafolheando.com.br e rogers.silva.original@gmail.com
Valor (impresso): R$ 48,60

Para adquirir o livro com frete incluso:

Editora Folheando: https://encurtador.com.br/vufqg

Rogers Silva nasceu e mora em Uberlândia-MG. Publicou contos, artigos de opinião e resenhas em sites, revistas, jornais e coletâneas de livros. Em 2012 publicou Manicômio (contos e novelas), sua primeira obra literária, cuja segunda edição sairá em 2025. Também em 2025 será lançado o seu primeiro curta-metragem: Estátuas sobre túmulos. É cofundador e colunista da Revista O Bule (www.revistaobule.com.br). Atualmente se dedica à escrita de roteiros para o cinema.

24 de jul. de 2025

Sobre mangás e animes #2 - Os animes japoneses e o erotismo

Por Gustavo Coelho 

Uma nostalgia pungente acomete aqueles que viveram a infância e a adolescência na década de 1990. Na memória afetiva de uma geração, estão marcadas as aberturas como de Yu Yu Hakusho, Os Cavaleiros do Zodíaco e Shurato, obras que se tornaram rituais vespertinos transmitidos pela extinta TV Manchete. Aquela era uma época de acesso limitado, onde cada episódio era um evento aguardado. Hoje, o cenário é outro: a um clique de distância, um universo de produções japonesas se abre, permitindo-nos acompanhar animes quase simultaneamente à sua exibição original. E, de fato, a qualidade técnica e narrativa de muitas obras contemporâneas — como Fate/Stay Night, Boruto ou o fenômeno One Piece — é inegável e capaz de despertar o mesmo fascínio de outrora. 

Contudo, ao navegar por este vasto oceano de opções, nota-se uma tendência que se propaga com uma força cada vez maior, gerando um crescente estranhamento e, por vezes, repulsa. A percepção deste fenômeno pode surgir de forma inesperada. Ao se deparar com um título como Kiss x Sis, cuja premissa de comédia escolar parece inofensiva, o espectador desavisado é confrontado com cenas de masturbação, insinuações sexuais explícitas entre meios-irmãos e uma constante apologia à erotização. O choque inicial poderia ser relativizado, não fosse por um detalhe crucial: a obra, como tantas outras do gênero, é primariamente direcionada a um público infanto-juvenil. 

Isto nos leva a um questionamento cultural inevitável: o que se passa na indústria de animação japonesa? Seriam nossas culturas tão distintas a ponto de normalizar tal conteúdo para crianças ou jovens? Uma breve pesquisa no Google acaba revelando que, longe de ser um caso isolado, este é um gênero consolidado e extremamente lucrativo no Japão. Títulos como Monster Musume, To Love Ru Darkness, Redo of Healer e Seikon no Qwaser são exemplos de mangás de sucesso adaptados para a TV, provando a alta demanda por esse tipo de entretenimento. É justo reconhecer que muitas dessas obras possuem narrativas criativas e sequências de ação bem executadas. No entanto, a "apelação" — o apelo à sexualidade de forma gratuita — continua a ser o principal chamariz, com conteúdos cada vez mais eróticos e a exploração de temas progressivamente mais complexos e controversos, como se observa em Junjou Romantica. 

Acredita-se, contudo, que um bom anime pode e deve existir com um conteúdo “ecchi” (termo que designa o erotismo sutil) moderado, sem a necessidade de resvalar para o explícito ou para o “pandering”. O público-alvo, majoritariamente infanto-juvenil, encontra-se em uma fase de descobertas que são muito mais sentimentais do que puramente sexuais. Há, inegavelmente, um despertar da libido na adolescência, mas o que mais aflora nesta etapa são as emoções, as idealizações e a busca por conexão. 

Independentemente do continente onde uma obra é produzida, seu público hoje é global. A responsabilidade dos criadores, portanto, transcende as fronteiras de seu mercado local. É necessária uma evolução no conceito criativo desses animes, adaptando os roteiros a uma sensibilidade mundial que não subestime a inteligência de seu público. O que cativava nas tardes da Manchete não era apenas a violência ou o traço, mas o sentimento de empatia humana como fórmula do sucesso: a amizade, o sacrifício, a superação. Talvez, ao resgatar essa essência, a indústria possa encontrar um equilíbrio, provando que a profundidade emocional ainda é o mais poderoso dos apelos.


Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.

22 de jul. de 2025

Gratiluz, Trump!

  

Por Allyne Fiorentino

Dizem os jovens místicos, leitores de livros de autoajuda e misticismo barato, “guardiões” do segredo que se esconde deles mesmos, que tudo aquilo que você visualiza, você é capaz de materializar na sua vida. Basta visualizar!

E não é raro encontrar muitos que colocam quadros na parede, com uma composição de recortes de revista de verdadeiras mansões, carros importados na porta da casa, piscina à mostra, um recorte de uma família dos antigos comerciais de margarina, sorrindo feliz e despreocupada. Sim, eu sei o que você está pensando se for meramente perspicaz: Mas isso não é imaginar! Exato. Eu sei, mas a explicação deles para isso é que há pessoas que são incapazes de criar uma imagem mental nítida de alguma possibilidade.

Tá aí uma coisa em que eles acertaram no alvo, mas sem imaginar a grandeza dessa conclusão a que eles chegaram. O processo parou no básico, mas se eles avançam um pouquinho se questionariam o porquê de as pessoas não conseguirem ter essa habilidade, que, segundo eles, abriria tantas portas para uma realidade melhor. Eis uma pergunta que deveria ser feita a esses jovens místicos, cheio de gratiluz, e a todos que se propõe a te dar soluções: “Por quê?”. Por que você não consegue imaginar? Por que esse processo dentro da sua cabeça é tão dificultoso pra ser processado?

O bom é que a vida é bastante irônica. Uma ironia quase newtoniana, que às vezes até desacreditamos, mas funciona. Se na escola, educadores sabem há bastante tempo que o grande problema dos alunos é não ter a capacidade de abstração desenvolvida e que isso impede que eles avancem em seus estudos – fato que quase ninguém fala porque falar sobre isso implica perguntar por que eles não conseguem abstrair e isso nos leva a questionar o nosso sistema mundial. “Ah mas tudo é culpa do Capitalismo, isso é conversa de Comunista!”. Bom, se na escola nosso exemplo de genialidade continua sendo os Gregos é porque alguma coisa neles admiramos que não conseguimos reproduzir hoje em dia. E eles não viviam um capitalismo. É só pensar. É só abstrair um pouco.

Eis que eles crescem e encontram a mesma dificuldade, só que agora de forma “mística”. E pra sanar essa dificuldade, leem muitos livros duvidosos que se propõe a “curar” essa falha mental, ou como eles chamam “bloqueios”. Número de livros que quiçá não leram na escola, por preguiça ou por má vontade, sem saber que a leitura guiada era o que traria a eles um pouco da capacidade de abstrair, ou seja, um grande ciclo vicioso meio engraçado meio triste.

E onde essa conversa vai chegar? Ela vai chegar no Trump e no seu tarifaço. Como? Acompanhe-me: TODOS os brasileiros, sem nenhuma exceção, estudaram na escola, nas aulas de História, Geografia, Sociologia enfim... a trajetória de como os EUA chegaram ao poder mundial: por meio de guerras, genocídios, colonização, violência, escravização, exploração de outros países, criação midiática de simbolismos que colonizam a mente e o imaginário das pessoas. Todos sabem disso, mas entram num grande processo de negação. A realidade é dura demais pra ser aceita. É duro imaginar uma vida fora do sistema. É inimaginável, é imaterializável, é invisualizável. É impossível.

Só que nos últimos dias em que o Brasil resolveu “peitar” os EUA, percebemos que a China está imaginando isso há muito tempo, trabalhando quietinha e silenciosamente sobre o impossível pra torná-lo possível. Não digo que os meios para se chegar a esse fim são dos melhores, mas essa conversa é sobre abstração, e, não, sobre política. É sobre imaginar. Ter a ousadia de imaginar.

Por que se você não tem a ousadia de imaginar coisas que vão além, você vai acabar montando um quadro de recortes em que seu maior desejo, o desejo do seu coração enquanto você está vivendo nesse inferno terráqueo é só uma casa, um carro, um iphone, uma piscina e uma família de comercial de margarina... Como dizem os jovens místicos, muito certeiramente, eu só posso mudar a minha realidade se eu primeiro aceitá-la como real. Mas eles não dizem: depois de aceitar, é preciso imaginar.

 Dizem os jovens místicos, leitores de livros de autoajuda e misticismo barato, “guardiões” do segredo que se esconde deles mesmos, que tudo aquilo que você visualiza, você é capaz de materializar na sua vida. Basta visualizar!

E não é raro encontrar muitos que colocam quadros na parede, com uma composição de recortes de revista de verdadeiras mansões, carros importados na porta da casa, piscina à mostra, um recorte de uma família dos antigos comerciais de margarina, sorrindo feliz e despreocupada. Sim, eu sei o que você está pensando se for meramente perspicaz: Mas isso não é imaginar! Exato. Eu sei, mas a explicação deles para isso é que há pessoas que são incapazes de criar uma imagem mental nítida de alguma possibilidade.

Tá aí uma coisa em que eles acertaram no alvo, mas sem imaginar a grandeza dessa conclusão a que eles chegaram. O processo parou no básico, mas se eles avançam um pouquinho se questionariam o porquê de as pessoas não conseguirem ter essa habilidade, que, segundo eles, abriria tantas portas para uma realidade melhor. Eis uma pergunta que deveria ser feita a esses jovens místicos, cheio de gratiluz, e a todos que se propõe a te dar soluções: “Por quê?”. Por que você não consegue imaginar? Por que esse processo dentro da sua cabeça é tão dificultoso pra ser processado?

O bom é que a vida é bastante irônica. Uma ironia quase newtoniana, que às vezes até desacreditamos, mas funciona. Se na escola, educadores sabem há bastante tempo que o grande problema dos alunos é não ter a capacidade de abstração desenvolvida e que isso impede que eles avancem em seus estudos – fato que quase ninguém fala porque falar sobre isso implica perguntar por que eles não conseguem abstrair e isso nos leva a questionar o nosso sistema mundial. “Ah mas tudo é culpa do Capitalismo, isso é conversa de Comunista!”. Bom, se na escola nosso exemplo de genialidade continua sendo os Gregos é porque alguma coisa neles admiramos que não conseguimos reproduzir hoje em dia. E eles não viviam um capitalismo. É só pensar. É só abstrair um pouco.

Eis que eles crescem e encontram a mesma dificuldade, só que agora de forma “mística”. E pra sanar essa dificuldade, leem muitos livros duvidosos que se propõe a “curar” essa falha mental, ou como eles chamam “bloqueios”. Número de livros que quiçá não leram na escola, por preguiça ou por má vontade, sem saber que a leitura guiada era o que traria a eles um pouco da capacidade de abstrair, ou seja, um grande ciclo vicioso meio engraçado meio triste.

E onde essa conversa vai chegar? Ela vai chegar no Trump e no seu tarifaço. Como? Acompanhe-me: TODOS os brasileiros, sem nenhuma exceção, estudaram na escola, nas aulas de História, Geografia, Sociologia enfim... a trajetória de como os EUA chegaram ao poder mundial: por meio de guerras, genocídios, colonização, violência, escravização, exploração de outros países, criação midiática de simbolismos que colonizam a mente e o imaginário das pessoas. Todos sabem disso, mas entram num grande processo de negação. A realidade é dura demais pra ser aceita. É duro imaginar uma vida fora do sistema. É inimaginável, é imaterializável, é invisualizável. É impossível.

Só que nos últimos dias em que o Brasil resolveu “peitar” os EUA, percebemos que a China está imaginando isso há muito tempo, trabalhando quietinha e silenciosamente sobre o impossível pra torná-lo possível. Não digo que os meios para se chegar a esse fim são dos melhores, mas essa conversa é sobre abstração, e, não, sobre política. É sobre imaginar. Ter a ousadia de imaginar.

Por que se você não tem a ousadia de imaginar coisas que vão além, você vai acabar montando um quadro de recortes em que seu maior desejo, o desejo do seu coração enquanto você está vivendo nesse inferno terráqueo é só uma casa, um carro, um iphone, uma piscina e uma família de comercial de margarina... Como dizem os jovens místicos, muito certeiramente, eu só posso mudar a minha realidade se eu primeiro aceitá-la como real. Mas eles não dizem: depois de aceitar, é preciso imaginar.

Originalmente publicada em Crônica do Dia.

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Allyne Fiorentino é natural de Minas Gerais, mas reside em São Paulo, capital. É profissional das Letras e da Educação, mestra em Estudos Literários na linha de Teorias e Crítica da Poesia, mais especificamente em poesia simbolista. Apaixonada por Literatura Feminina, Simbolismo, Filosofia e excentricidades. Low profile do mundo literário, escreve pouco, mas, acredite, incisivamente. Está também em Crônica do Dia. Instagram: @fiorentinoallyne. 

16 de jul. de 2025

‘Os ratos vão para o céu?’, de Vitor Miranda

 

Nestes contos sobre a infância, Vitor toca em pontos que fogem da própria psicanálise. Trabalhado num texto de conceitos poundianos, misturado com a comunicação dinâmica de nossos dias, seu característico humor sarcástico e uma pitada de realismo fantástico, relata uma espécie de distopia neurolinguística. Mexe em lugares muito perigosos da mente humana. Um bebê na primeira palavra deixa de dizer pai ou mãe, para dizer Google. A deturpação da retina do narrador ganha destaque nesse livro, que é o seu mais radical. Nos faz deixar de achar absurdo a possibilidade de engravidar de um sapo depois de engolirmos tanto sapo na vida. Vitor pega pesado em sua literatura. O livro é absurdamente provocador. Escancara como nós somos assassinos. Depois dos poemas de Exátomos (seu livro anterior) nos mostrar que pioramos, Os ratos vão para o céu? Mostra a crueldade das crianças. Quem escreveu esse livro de contos foi a sua criança mais revoltada. Acima de tudo, Miranda escreveu um dos livros mais políticos dessa geração ao nos colocar de frente para a tortura de nossas infâncias que um dia chamamos de futuro da nação. 

Prefácio na ratoeira, por Xico Sá 

Estava terminando a milésima releitura de Ratos e homens, escrito em 1937 pelo phodástico John Steinbeck, quando me chegou o original encadernado do livro-pergunta de Vitor Miranda. Os roedores amam literatura como apreciam queijos de todos os tipos e origens. A literatura retribui esse estranho amor: Os ratos (Dyonélio Machado) e O riso dos ratos (Joca Reiners Terron), sem se falar no barulho dos ratos nos armários de Angústia (Graciliano Ramos). 

Os ratos vão para o céu?, de Vitor Miranda, nos devolve os roedores em um momento atordoado da infância. Um ratinho cobaia da nossa eterna falta de humanidade. Terá salvação? Existe o paraíso dos roedores para aplacar a nossa culpa? Semeio mais interrogações nesse campo minado. 

Este livro está repleto de assombros que reverberam lá do começo da vida. Os assombros que ficam para sempre. E viram ficção, conto, sapo ou fábula. O autor tira o melhor dos proveitos. Os fantasmas agradecem ao fabulário geral aqui descrito. Os fantasmas, como os ratos, preferem literatura à terapia ou psicanálise. 

Os pesadelos crescem e ficam adultos. Eles ainda estão aqui, junto com ratos, medos, interrogações e a crônica da realidade punk. 

“Cachorros ateus se comiam em frente ao velório”. Aqui já pulamos para outro conto fantástico. A vida se bole em um cenário de morte. Tudo pulsa e chama para o jogo de quem sabe lutar com palavras. 

Vida noves fora zero. Pule para dentro, leitor, é sobre ratos, homens pequenos & grandes, com diálogos para comover. 

Uma última advertência: costela no bafo não rende poema. Aproveite. 


Para adquirir o livro, acesse o Selo Marginal:

https://www.instagram.com/selo_neomarginal/

Ou entre em contato diretamente com o autor. 

 

Vitor Miranda é poeta e escritor paulistano com vivências pelo Paraná e Minas Gerais. Atualmente se divide entre São Paulo e Valinhos. Entre poemas e contos e o romance experimental A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty, lançou seu sétimo livro, Os ratos vão para o céu? É poeta e letrista da Banda da Portaria, projeto que nasceu para musicar os poemas de seu livro Poemas de amor deixados na portaria. É parceiro em letras e canções de Alice Ruiz, Rubi, Touché, João Sobral, Luz Marina, Zeca Alencar, entre outros. Criou em 2019 o videocast de poesia Prosa com Poeta, no qual entrevistou diversos artistas. É criador e líder do Movimento Neomarginal, grupo artístico que tenta vencer as amarras do mercado artístico misturando artistas de diferentes níveis (sociais) de público nos mesmos eventos. Está no Instagram.

14 de jul. de 2025

Duplicidade

Por Milton Rezende 
 
Quando nasci
nascia comigo
o oposto de mim.
Assim tenho dois nomes
que simbolicamente constituem
dois inimigos entre si.
 
Para caracterizar dois pólos
não é preciso enumerar os opostos
e nem as subdivisões ocorridas
através de concessões bilaterais
para se chegar a um entendimento.
 
O certo é que esse antagonismo
cristalizou-se no relacionamento,
aniquilando todas as tentativas
de integração entre as partes.
 
O diabo do outro sempre me negou
contradisse-me em público
desmentiu minhas verdades
impediu-me as atitudes
e por fim desmanchou meu casamento.
 
Aí então fiquei louco
e fui recolhido num hospício
onde me perdi eu mesmo num labirinto
de mentiras e desvairismo,
até que me matei.
 
E não é que o outro foi ao enterro,
carregou meu caixão e se riu de mim?
Mas depois ele também morreu
e ainda hoje estamos em conflito aberto.
 
Coisa que, se não traz as vantagens
do perdão pela unidade aparente,
pelo menos impede nosso julgamento
e nos livra do fogo interno/eterno
concedido aos que se pretendem coerentes.
 
Do livro O Acaso das Manhãs

 
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, morou em Campinas (SP), Ervália (MG) e retornou a Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quinze livros publicados. Tem um site e um blog. 

Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).

12 de jul. de 2025

A precariedade do afeto

Por Whisner Fraga 

Em A cachorra (Intrínseca, 2020), Pilar Quintana entrega ao leitor um romance de linguagem seca, direta, quase rude, mas que reverbera como o mar que contorna a vila onde a trama se passa: ora tranquilo, ora descontrolado. Nesta narrativa breve, mas intensa, conhecemos Damares, uma mulher que vive em um balneário costeiro da Colômbia, ao lado do companheiro Rogelio e de cães marcados pela violência com que são tratados naquele lar.

 


Ao adotar uma cadela recém-nascida, Damares parece buscar nela o consolo da maternidade negada. No entanto, a relação entre ambas logo se tinge de ambiguidade – a docilidade inicial da cachorra cede lugar a momentos de rebeldia, o que torna insuportável para Damares a experiência de se ver novamente rejeitada pelo afeto que tenta cultivar.
 

Quintana constrói, com impressionante economia de palavras, com um estilo seco e direto, o retrato de uma existência oprimida pela solidão, pela falta de compreensão e pela dureza da sobrevivência. A casa em que vivem, quase em ruínas, simboliza a precariedade de tudo ao redor, enquanto o clima chuvoso, os pernilongos, a lama, reforçam a sensação de degradação física e emocional. Ao mesmo tempo, há um esforço constante para manter tudo limpo e em ordem, como se os donos do imóvel pudessem voltar a qualquer momento. Essa sensação de perigo, de algo que está sempre prestes a acontecer, rondando, essa possibilidade, parece mais importante do que tudo, mais até do que o próprio relacionamento entre Damares e Rogelio.

 

A prosa é crua, sem adornos. Há diálogos curtos, quase sempre ásperos, e uma sensação de violência suspensa paira sobre cada página, como se qualquer gesto pudesse desencadear a ruína final. Damares projeta na cachorra seus desejos mais secretos de afeto e pertencimento, mas o animal, em sua essência livre, parece rejeitar a prisão que a própria mulher escolheu para si. É mais uma contradição.

 

A cachorra extrai carinho das mãos grandes e calejadas de Damares. Nestes momentos de aparente compreensão, as duas tecem um universo delas, de cumplicidade, de empatia, mas também de medo. Todos sabem que o extinto de sobrevivência é muito mais forte do que a compaixão, do que a amizade.

 

A cachorra, em sua simplicidade enganosa, deixa marcas profundas no leitor, como sempre acontece após a leitura de um bom livro. Pilar Quintana apresenta personagens cuja humanidade transparece justamente em seus aspectos mais brutais, mostrando que, sob a crosta da violência e do egoísmo, pulsa sempre a carência, a necessidade profunda que o ser humano tem de ser amado e compreendido. Um livro marcante, de uma escritora que merece maior atenção do público brasileiro.

Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.