21 de jun. de 2023

'Flores de cemitério' e 'Enterro, finados e chuva'


Por Milton Rezende
 

Flores de cemitério 

Entre a vontade ferrenha do sonho
e o bloqueio efetivo do medo,
havia toda a extensão de uma noite
em que eu devia permanecer à porta
de sua casa velando o teu sono e
vendo a morte subterrânea do desejo.

Eu não estava sozinho nas ruas
de uma cidade quieta, havia sob os
meus pés toda uma horda de cadáveres
que se arrastavam feito minhocas e
viam com vivo interesse o desfecho
de minhas peripécias góticas. 

Entre a fachada fechada de sua casa
e os portões de acesso ao cemitério,
havia todo um roteiro desesperado
que eu devia percorrer ao encalço de
minha lucidez no encosto das sacadas
ou seguir bêbado à procura de flores. 

Eu não estava sorrindo nos bares
próximos a uma praça deserta, havia
solidão e pânico em meus propósitos
quando eu me dirigia ao cemitério e
com as mãos trêmulas sobre o canteiro
eu enchia de flores a bolsa de plástico. 

Entre a calma indiferença do teu sono
e a obsessão doente da paixão, havia
todo um ritual de poesia que visava
alterar o descompasso entre o amor
caótico que eu sentia e o abismo
de silêncio e luz que te envolvia. 

E daqui a alguns anos
(findo o mistério),
quando a vida estiver
muito longe e grande
for a fileira de sonhos,
tu então terá a certeza
de ter sido a primeira
a receber flores do cemitério.

Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências


Enterro, finados e chuva
 

“Soluços, lágrimas, casa arrumada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões de água benta, o fechar do caixão, a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e trespassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um...”(Machado de Assis, 1839-1908). 

Um a um todos foram ao cemitério naquele dia. Levavam flores e sentimentos diversos. Acordei cedo, olhos ardendo e fui me postar ao lado de um túmulo deserto. Estava terrível e eu fui ficar ali, clandestino, a observar. Não houve enterros, embora tivesse mortos para o dia seguinte. Eu seria um deles, havia deliberado já. No bolso esquerdo a lista de débitos e no outro as fotografias de família. No fim da tarde começou a chuva e o barro e as flores e aquelas pessoas indo embora deixou em mim uma sensação de vazio. Voltei pra casa dizendo até logo àqueles que nada perceberam do seu dia e eram de todo indiferentes à minha presença prevista para amanhã, ou depois... (Milton Rezende, 1962- ?). 

Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.

14 de jun. de 2023

Minireminiscencias #8


Por Glauco Mattoso

Desde 1999 venho compondo sonnettos aos milhares, mas, depois daquele que recebeu o numero 5555, passei a compor dissonnettos, como chamo o poema de 16 versos ou mais, em logar dos 14 do sonnetto. Ahi converti alguns dos antigos em dissonnetto, inclusive os sonnettilhos. Aqui vão dois exemplos que sahiram no livro Graphophobia, agora dissonnettizados, que fallam justamente da composição num molde fixo.


Claustrophobia [3846]

Eu não fico aqui sozinho!
De pressão isto é panella!
Mas, si eu saio, me encaminho
bem ao fogo! Que esparrella!
Si ficar neste quartinho,
logo eu pullo da janella!
Sou peor que passarinho
na gaiola, ou réu na cella!
Dois quartettos, só? Que mais?
Vae que eu trovas fazer tente...
Tercettinhos? Grades taes
me apprisionam totalmente!
Nessa jaula eu não me metto!
Si uma trova prende a gente,
como posso, num sonnetto,
libertar a minha mente?


Agoraphobia [3847]


Tem certeza? Tudo eu posso?
Não preciso nem rhymar?
Nem tem metrica este troço?
Que legal? Vou me exbaldar!
E as estrophes? Neste nosso
poeminha, as faço em par?
Ou nem ligo e nem me coço
si as não ponho no logar?
Nossa! Tanta liberdade
eu extranho! Quem diria?
Puxa vida! Attraz de grade
sempre estive, em poesia!
Mas, si tudo fica aberto,
mais me augmenta esta agonia!
Mais eu soffro, e mais me apperto:
Antes, livre eu me sentia!

 

Glauco Mattoso é paulistano de 1951. Nos annos 1970 editou o poezine Jornal dobrabil e destaccou-se entre os poetas "marginaes". Compoz mais de dez mil poemas ou de septe mil sonnettos e assignou mais de cem livros de poesia, trez romances (um delles em  verso), trez volumes de contos, alem de chronicas, ensaios, um tractado de versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção esthetica às reformas  cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto. Mattoso perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador fallante. Seus ebooks saem pelo sello Casa de Ferreiro e seu blog traz mais informação.



12 de jun. de 2023

microconto 337


Por Renata Sieiro Fernandes
 

a mulher, 
no ocaso da vida, 
falava sobre a invisibilidade 
que a sociedade lhe impunha. 
ela mesma 
já quase não notava seu corpo, 
mas no dia 
que começou a escrever, 
a colocar no papel 
o que existia nela, 
pouco a pouco, 
passou a enxergar suas mãos. 
dali 
a que todo o seu corpo 
viesse à luz 
foi um toque de mágica. 

Renata Sieiro Fernandes é microcontista. Publicou A donzela guerreira e outros microcontos, vol. 1, com financiamento do PROAC-SP, em 2019 e o volume 2 de forma independente. Publicou microcontos na antologia Parem as máquinas, pelo selo OffFlip (2020), na Revista Trama (2021), nas coletâneas Negociata na penumbra (Ipê editora, 2021), Fotoescritos do confinamento (Editora Desalinho, 2021) e Coletânea do Prêmio Off Flip de Literatura 2021 – Conto (2021). Participa com microcontos da Coletânea Sobre Nossas Avós: memória, resistência e ancestralidade (2022) e da Coletânea do Prêmio Off Flip de Literatura 2022 tendo recebido Menção Honrosa.

9 de jun. de 2023

'Enquanto a chuva não passa' e 'Eutanásia'


Por Milton Rezende
 

Enquanto a chuva não passa

Os dias acalmaram o sonho,
como se para isso não bastasse
a ausência de teus olhos.
Mas na noite um verso simples
brotava do silêncio para dar
uma esperança menos triste
ao cotidiano.
Ao longe eu visualizava uma imagem
pensativa que acreditava estar
preenchendo o hálito da noite
e a chuva no telhado com teu
sorriso mágico. Mas a distância
não me permitia tais conclusões.
Seria necessária a palavra e a
tua presença para restabelecer a paz
e aquela sensação confiante que
tínhamos quando crianças.
Coordenar as coisas e arrumar
a casa num ambiente tranquilo
para receber a realidade,
dissipar os sonhos
e adormecer em teu gesto. 

Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências 

Eutanásia 

Sob uma chuva de outubro
o germe penetrou
no solo árido de mim,
onde as emoções se resguardavam.

Mas o sol e o raciocínio
dos meses subsequentes
atrofiaram o germe ávido
que havia trazido o amor. 

E foram tantos os desencontros
do clima naquele ano
que a meteorologia afetiva
justifica-se culpando a ambos. 

Agora, numa sala de espera
contígua à do esquecimento,
resta-nos como única saída
a eutanásia cúmplice
do que restou do sonho. 

Do livro O Acaso das Manhãs 

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.

 

2 de jun. de 2023

‘Tentei chegar aqui com estas mãos’, de Luciana Moraes


Entre uma realidade que existe e outras que não existem, mas que desejam vir à tona, somos convidados a imergir num fluxo contínuo, numa obra em travessia, entremeada de imagens e sons – navegações. Aqui surge uma escrita que não se resume à dor de um momento, à vinda ou ao lapso de alegria.

Tentei chegar aqui com estas mãos poderia ser lido como uma teia de poemas em interlocução, ora ou outra, tendo elementos linguísticos do português brasileiro unidos a termos do tupi, maxacali, yoruba, inglês e espanhol . São linguagens que se procriam em diferentes versões de si mesmas, ora dialogando entre si, a partir do encaixe temático, ora pairando em lacunas especialmente deixadas no percurso.

O leitor poderá perceber que, a partir de cada um dos poemas (como unidades independentes, mas também intercambiáveis) é possível recomeçar uma nova trajetória de reinterpretação do estar no mundo. O desejo permanece inscrevendo o corpo como um poema infinito no coração de outra história;  o poema-corpo guarda e desvela seu estado presente no espaço, no passar de páginas; seu corpo-palavra segue buscando ressignificações, através de outros formatos e de novas palavras ocasionalmente criadas.

Na primeira seção, vemos poemas em diálogo ecfrástico com obras diversas, o que nos mostra que a experiência interartística nos oferece muitas possibilidades de acessos, saídas, uma diversidade de enquadramentos do olhar; geração de sentidos dessa escrita dialógica. Ainda nesta seção, há uma subseção, realizada a partir da leitura crítica de Água Viva, de Clarice Lispector e seu desdobramento em diálogos ecfrásticos.

Já na segunda seção, existe outra proposta, pois os poemas procuram realçar mais o questionamento da vida diante de situações do cotidiano, “tocado à espreita”. Desta vez, sem diálogo direto com obras artísticas, há ainda a intensa exploração dos recursos melo, fano e logopeicos. A experiência de leitura talvez possa inserir, quem a percorre atentamente, num universo de múltipla sensibilidade, até mesmo o verbo beirando o “deslimite” das expressões de um corpo sem órgãos artaudiano.

A pedra no meio caminho de Drummond, assim como a experiência de sufocamento de Kafka parecem ser resgatadas em determinados momentos, porém no sentido de querermos avançar com um outro corpo, desentranhado da pedra e das paredes, “o corpo no corpo recriando milhares”. Com autonomia em movimento, um feminino que visa estar fora do refúgio comum, para além de um estado asséptico.

Nessa escrita, em saltos semânticos, como uma espécie de “eterno retorno nietzschiano”, após um denso processo de 3 anos de pandemia, temos a denúncia de  emoções em série – entre o passado, o presente e o futuro, de modo anacrônico, em embaralhamento – quase que ininterruptamente, buscando o centro, o eixo vital na matéria. O sentido de reinvenção social vai se constituindo por meio do percurso de um corpo em movimento, questionamento e fabulação.

O “alvo grito de rapina” entrecortado nas brechas do papel talvez venha nos alertar como somos humanos e quão pouco nos realizamos nesta era viral do antropoceno, a ponto de precisarmos, de fato, ver o animismo tomar conta de nós. Nesse cenário de “eu-nosso-desmedido” da poesia, geramos novas significações às palavras, já tão surradas, em meio à vida ordinária.

O instante é extraordinário, incomensurável; mas o tempo passou e passa.

O abismo é aqui tocado, em cada instante, para alçarmos outros voos – melhores.

Quem sabe?!

 

Ultra-passagens

O poema dialoga com a obra Senecio (homem velho) (1922), Paul Klee

 

 

0. 
Vida, está aqui o recomeço,
espaço onde refaço o texto
anterior, desfeito em partes  

1.
Um anjo em brasa, à espreita, 
neste céu aberto da varanda

2.
Hoje, sexta, tão passada:
ontem ainda era segunda
toda a vista limpa, sem óculos 
tocando aquele céu aberto, soletrando-o 
à víbora do quebra-cabeça 
lecionando à pedra sobre estar no ar
mãos-pele-sopro-visão  

3.
tudo foi breve e o Agora vibra

4.
Escrevo contigo e sozinha
: com o tom drummondiAno e
um desentranhado tema da nossa espécie :
gravado no corpo com olhares
Fractais

5.
tergiversadas cores dessa sutura, unindo todas
as faces : uma paisagem híbrida, risos e choros
nas nuvens, neste umtempomuito, uma ferida doidamente
tão batida e tocada,
mas tão perplexa,
tão retrasada.

6.
Se confiaria no verbo
fazer? 

Tentei chegar aqui com estas mãos é um livro de poesia cujo nome já contém uma dubiedade proposital. Tentativa de chegar com “estas mãos” apresenta uma questão demonstrativa, um desvio do óbvio.  Nele, toco em temáticas paradoxais do ser humano, como o luto e a luta, a insatisfação e o desejo, por meio de diferentes tons, ritmos e (des)enquadramentos semióticos. A escrita segue em diálogo com os anos que temos vivido, porém, sob olhares diversos, como uma amálgama de sensações do corpo feminino que pulsa entre euforia, dor, lapsos e rememoração do tempo. Tive a intenção de explorar (no melhor sentido da palavra) o instante presente, desejando extrapolar a visão comum e descobrir outros sentidos para as palavras e para o caminho diário. Desse modo, escrever pode ser atuar com gestos dialógicos em várias esferas das artes (pelo saber e não saber), com intuito de sentir um tempo vívido: o “alvo grito de rapina”. E assim, principalmente por meio da poesia ecfrástica contemporânea, desenvolvo experiências estéticas com 31 obras de artes visuais, de variadas épocas. Há duas seções: “Diálogos Ecfrásticos”, com obras de Frida Kahlo, Clarice Lispector, entre outros artistas; e “Cotidiano Tocado à Espreita”.

Para adquirir o livro, entre em contato com a autora:

Instagram: @lucianaescreveaqui
Facebook: https://www.facebook.com/luciana.moraes.75098
E-mail: 
lucianaqmoraes@gmail.com

Ou https://istoedicoes.com.br/produtos/tenteichegaraqui/

Luciana Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 1993. Poeta, revisora e tradutora, graduada em  Letras (Unirio). Integra a equipe “Fazia Poesia” e o coletivo “Escreviventes”. Participou da “Oficina Experimental de Poesia” (RJ). Tem poemas em revistas como “Mallarmargens”, “Cassandra”, “Torquato” e “Letras Salvajes”. Presente em antologias e diferentes projetos como  Versão brasileira: a voz da mulher – coletânea digital de poesia, baseada na Independência do Brasil sob a perspectiva da mulher (2023, Prefeitura - RJ) – e Coletânea Off Flip de Literatura – Poesia (2023). Tentei chegar aqui com estas mãos é seu livro de estreia.

28 de mai. de 2023

Minireminiscencias #7


Por Glauco Mattoso

No ultimo dia 9, ao ouvir no radio a noticia da morte de Ritta Lee, só trez annos mais velha que eu, me debulhei todo. Ritta sempre foi aquella gotta de vitamina na veia da minha geração. Só dois momentos pessoaes. No theatro Zaccaro, depois do show, fui com o amigo Mario Alvarez ao camarim della, para deixar um exemplar de Maus modos do verbo. Na serra da Canthareira, o amigo Antonio Carlos Fonseca (do gruppo Somos) tinha um chalé vizinho ao della, que vinha ao alpendre jogar conversa fora com quem quizesse pappear. Fora disso, só tietagem de fan, como todos eramos. No caso masculino, pode-se discutir quem seria o maior nome do rock brazileiro. No caso feminino, não. E, como mulher, ella foi muito mais que rockeira. Foi pioneira. Revisito este poema do livro Boa morte, finado e outros poemas.

Sazonado? [9702]

Não, Glauco! Um premiado não precisa
provar, anno por anno, que tem merito
capaz de lhe valer outro trophéu!
Ganhou seu Jaboty? Seu Oceanos?
Ah, pode fazer merda, agora, com
totaes direitos, Glauco! Não concorda?
A Ritta Lee ja disse que é gostoso
a gente ser famoso para, à bessa,
dizer qualquer besteira por ahi!

Glauco Mattoso é paulistano de 1951. Nos annos 1970 editou o poezine Jornal dobrabil e destaccou-se entre os poetas "marginaes". Compoz mais de dez mil poemas ou de septe mil sonnettos e assignou mais de cem livros de poesia, trez romances (um delles em  verso), trez volumes de contos, alem de chronicas, ensaios, um tractado de versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção esthetica às reformas  cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto. Mattoso perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador fallante. Seus ebooks saem pelo sello Casa de Ferreiro e seu blog traz mais informação.

27 de mai. de 2023

Poemas de constatação


Por Gustavo Faquineti Batistella Paz 

 

Cinéma Vérité

verter a verdade
é papel molhado
num copo de conhaque
o álcool borbulha
as nuances do fato
principalmente quando
este é capturado
pela grande piada
do plano detalhe 

Júbilo/Jogo

um grito inocente
é sempre mais útil
que o apelo culposo 

a lente é desastre
operado por uma criança
com tesoura e cola
maculando as unhas
ainda por cortar 

2007 Nostalgia

ainda é dia
mas a cena
se esmorece
                        O que eu fiz?

 

Gustavo Faquineti Batistella Paz é graduado em Letras Português-Inglês pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), é professor de língua inglesa e portuguesa do Brasil, além de poeta, tradutor e redator SEO. Publicou a plaquete Apreciação de Jarman ou Fuck Me Blind, de forma online e independente, e contribuiu com poemas para revistas literárias como Aboio, Ruído Manifesto, A.galinha, Fruta Bruta e Sucuru.

25 de mai. de 2023

Não chore


Por Nádia Coldebella

Para J.J., pessoa excepcional, vítima de feminicídio. In memorian.

O sobrinho

Existem, nas famílias, aquelas palavras que querem pular boca a fora, mas são contidas por um muro de dentes. Esses mesmos dentes rangem doloridos, contorcendo a face ressentida ou simplesmente alicerçando um mar de lágrimas prestes a derramar.

Raiva. Tristeza. O sobrinho não sabia. Os dentes continham alguma coisa para além de palavras que ele, tão jovem, ainda não conhecia o nome.

Não chore, criança. Esse nome nunca chegará ao seu coração.

O pai

O inacreditável está na entrada da casa. O improvável, escrito em letras garrafais. O inexplicável, esculpido e pintado em cores vivas para todo mundo ver. O inescapável é concreto, mas mesmo assim escapa pelos dedos, como areia da praia que escorre ao carinho das ondas.

Um castelo desfeito, foi o que o pai sentiu. Derramou lágrimas sozinho e fechou os olhos. Rezou a Deus para que o implausível, agora manifesto, fosse apenas um delírio da sua cabeça idosa que começava a ficar senil.

Não chore, meu pai. Enquanto houver um grão de areia na praia, acariciarei seu rosto.

A mãe 

As vezes, se existe no meio do nada. Quando a realidade retira o chão de sob os pés, só o abismo insondável resta. Queda-livre.

A mãe viu assim. Ela tentou fazer de conta que pisava chão sólido quando sentiu que cada pedaço de amor profundo investido esperançosamente havia sido arrancado do seu peito. Agora estava enterrado num buraco. E ela não tinha ideia do que fazer com a dor que sobrara. Olhava nas malas, para ver se conseguia alguma coisa de volta.

Não chore, minha mãe. Eu te sustentarei enquanto pisares nesse mundo.

O irmão 

A realidade vem com filtro. Quando o filtro desaparece, o bizarro e o cruel dançam juntos. O filtro é um atenuante. Senão a dor não pode ser forçosamente suportada. A força vem de um lugar que ninguém sabe onde fica, mas ela é apenas uma fachada. Uma casca necessária, que impede o desmoronamento. Não dá pra desmoronar. Senão todo mundo cai. 

O irmão sentiu o desespero. Era muito o peso, mas ele suportou. Ele não sabia até quando, mas não deixaria os joelhos dobrarem. Ele repetia isso para si mesmo, como um mantra, amortecido pelo tremendo impacto da realidade que se descortinara no necrotério. E pelo dever que se descortinava a sua frente.

Não chore, meu irmão. Estou ao seu lado, te guiando.

O filho

Se o abandono pode extinguir o corpo, o desamparo extingue a alma. Quando tudo o que se ama vai embora, onde coloco todo o meu amor? Porque nessa hora se é  jogado no vácuo. Nessa hora, é dubitável a existência. 

O filho era pequeno. Ele não viu mais a mãe, depois do boa noite e do santo anjo. Não tinha mais nada lá. Nem mamãe, nem papai, nem ele. Ele sabia que ela tinha sido colocada sob a terra, mas será que ela realmente se fora? Sobraram algumas coisas e algumas palavras. Mas as palavras não faziam sentido para o menino, porque ele ainda era arrastado pelo tsunami que, naquela madrugada, chegou junto com o pai e levou embora a mãe.

Não chore, filhinho. Eu nunca deixarei que você fique só.

O amigo

Alguns observam consternados, enquanto o caixão desce. Outros, sedentos por sangue, invadem espaços sagrados e tratam a dor como carne no açougue. Mas a morte é a única certeza dos vivos.

O amigo olhava a família. Mesmo expostos a tamanha desumanidade, crueza e brutalidade, circularam com naturalidade entre os preparativos. Deixaram o caixão lacrado para poupar a todos do choque. Cuidavam uns dos outros, embora em frangalhos. O amigo não conseguiu conter o impacto daquela dor, que vinha como as ondas violentas e arrastava tudo o que estava em sua frente. 

Não chore, meu amigo. Seja amigo dos meus, por mim.

A resposta

Você nasceu com olhos brilhantes, luzeiros na escuridão desse mundo que não suportou sua luz! Ele foi bruto, cruel e estupido com você. Empunhou sua confiança como arma e tentou aniquilar toda a ternura do seu olhar.

Mas não chore, querida! Você é muito mais que o papel que escreveram para você!

Seu grito contido ecoará em nossas orações. Suas palavras caladas florescerão e lançarão sementes de esperança.  

Não chore, querida! Sua luz não se apagou. Nós lutaremos por você.  Nossa resistência será a gentileza, nossa arma a tolerância e nosso grito o amor. Sua luz ficou em nós.


Nádia Coldebella é paranaense e virginiana, formada em Psicologia pela UEM, mestre em Psicologia pela UFRGS. É escritora e brinca de pintar nas horas vagas na verdade, pensa em terminar seus dias assim. Não tem grandes pretensões, apenas deseja ser uma peça para a construção de um mundo onde suas filhas possam ser livres e andar sem medo. Como colaboradora do coletivo Crônica do Dia, é uma das autoras da antologia Retire aqui a sua história.

 

24 de mai. de 2023

‘Cavidade’, de Alexandre Mendes (obra póstuma)


Por agner nyhyhwhw
 

Alexandre Mendes era um inconformado. Esse inconformismo já pode ser sentido de cara no contundente texto "Mínimo", que abre o livro:  

"Lambe logo o meu chão,
Meu escravo; desgraçado
Deixa tudo bem limpinho,
porque eu pago seu salário" 

Aqui temos bem nítida a crítica sobre as relações trabalhistas costumeiras: é a escravidão moderna, a escravidão assalariada. Esse tema é um dos mais presentes na obra de Alexandre, retratado de forma visceral ou com inspirado sarcasmo em textos como “Ao patrão, com carinho”, “Salário”, “A ficção imita a realidade”, “Colisão de mentes” ou “Brêiqui de rullis”.

As instruções do seu patrão: 

. Senta aqui e escuta meu sermão do dia.
. Sorria sempre para as tarefas de adulto que lhe obrigamos a executar.
. Conforme-se com o salário de criança que nós lhe pagamos.
Brêiqui de rullis 

A escravidão histórica colonial também é tema de textos como "Acaso". Alexandre mostra que a escravidão continua, os escravos modernos seguem apanhando, seja do patrão, seja da polícia, seja da máquina produtiva que não pode parar, seja da indiferença. 

lá jazia o defunto
-Era só um vagabundo!
rabecão já vai chegar
Um cara 

O cotidiano da periferia, ou daquelas pessoas marginalizadas e sabotadas pelos detentores do poder, são assuntos frequentes. Como em "Cocôtidiano", cujo título já diz tudo. Ou em “No limite”, “Tropa de elite”, “Perdi o sono”, “Cálice”, “Bar da esquina”, “A queda”, “Meia hora”, entre outros.

"lá falta concreto
esgoto e dente"
Seu Manel 

 "Estamos com medo. Espero que encontrem logo o corpo."
Tive medo essa noite 

Em "O crime está vencendo?”, evidencia que a divisão da sociedade em vencedores e perdedores é uma grande falácia. Até mesmo a situação da polícia, soldados e demais guardiões da pátria e da ordem, é vista com crítica, mas também com humanidade, reconhecendo a perversa e famigerada estratégia de dominação de dividir e conquistar, colocando sabotado contra sabotado. 

“Anteontem era zagueiro
Ontem, era mau sujeito
E hoje, apenas estatística”
Condecoração de honra 

“A polícia é mau paga e às vezes desconta suas frustrações na gente. Tudo que eles querem é ouvir "sim, senhor" e "não, senhor".”
Recomendações de um macaco velho 

As temáticas na obra de Alexandre são grandes, passando por relações familiares, que nem sempre são exemplares ou amorosas, como a conturbada relação entre pai e filho vista em “Di pedra” e “Papai”; 

 "Não sobrou nada,
caro estranho, nada,
nada pra você"
Di pedra 

e as relações com a natureza e o mundo animal, retratadas sempre com empatia. 

 "(Adeus, breve nos veremos!)"
Uma vida (quase) sem vida

 "Homens por cima
Animais por baixo
Mas não tentem provocá-los
dentro de seu próprio espaço"
Animal Planet 

Fruto de uma visão de mundo ampliada de alguém que foi camelô, cobrador de ônibus, professor de história, entre outras funções, além de vivenciar a realidade de comunidades periféricas. Alguém que, não apenas estudava o mundo, mas o observava de perto, em sua múltiplas facetas, com respeito e humildade. E, apesar do olhar crítico, conseguia interagir com uma contagiante simpatia e bom humor, características também marcantes em sua obra. 

"Entrou no coletivo; deu um arroto e pulou a roleta: Levou um esporro do cobrador. Puxou 50 pratas do bolso e pagou a passagem, dizendo ao funcionário que ficasse com o troco. - Hoje, vamos quebrar a rotina!"
Brêiqui de rullis

"Assinval despejara todos os seus herdeiros sobre o bife do bundão da mesa dez."
O troco da gorjeta 

O mundo, as pessoas, a natureza, e as interrelações disso tudo em nossa confusa sociedade é retratado com admirável empatia e criatividade, como em "Glória", "Belo bela vista" ou "Terra". 

O inconformismo reverbera como uma revolta criativa e construtiva. 

"Ergueu a mão esquerda para o alto, tentando alcançar as estrelas, no ápice do esforço físico. 'Eu sou a natureza!'-Gritou."
Terra

As reflexões se estendem sobre os sentidos da vida e da morte, conflitos existenciais, o ser e o não ser, a verdade e o vazio. Reflexões estas que podem não apenas desconstruir o saber absoluto, como também a própria linguagem formal ou até a poética convencional. Temos assim "Lindo'', um subversivo poema cíclico de 11 páginas. Temos também "Irmãos Metralha", em que a crítica social vem junto à subversão das famigeradas conjugações verbais, tão entubadas nos alunos por anos e anos no ensino convencional das escolas. "A revolta das palavras'' é outro exemplo de subversão linguística, de forma bem humorada. A contundência, tanto da ideia, como do linguajar poético, pode ser sentida em "Seu Manuel". 

"O sábio que soube demais
geme e chora
tentando voltar atrás
descobrindo que a verdade aprisiona

dentro da sua verdade
que os outros sábios chamam de nada"
Sem açúcar 

"universo paralelo
FAÇA-SE PRESENTE"
 

"Vê como é o destino?
Um dia é otimismo
crença em contos
verdade mau contada
outrora é escuro abismo,
e o fim da linha revela o nada."
GG Allin 

"Pra que o pra quê
de tudo isso?
Não sei… Quando eu comecei a tentar entender, já era desse jeito…"
[?]

"eu sei quem é você
então, por favor, me ajude
e me diga, afinal de contas:
quem sou eu?"
[??] 

Estas reflexões são tão fortes na obra de Alexandre que ele até criou o filósofo Nihildamus. 

Obra que, afinal, era também vasta como seu coração. 

"(A minha cara é bem feia, mas o meu coração é do tamanho de um planeta!)"
Ah! 

Este livro traz poesia e prosa, mas Alexandre também fez ilustrações, quadrinhos, zines, e colaborações em projetos diversos, material que ainda há de render outras coletâneas. 

Alexandre foi um artista que nos deixou antes do que deveria ser, mas seu legado permanecerá.

 Para conhecer mais sobre a obra: editoramerdanamao@yahoo.com.

Alexandre Mendes é fruto da efervescente cena cultural de Niterói/RJ dos anos noventa, mas de uma cena que não estava nos palcos e holofotes. Ele e sua turma preferiam perambular pelo submundo fazendo zines, poesias e muito mais. Sua morte prematura se deu enquanto fazia exercícios físicos e um carro desgovernado o atropelou. Atuou na primeira fase do zine O Berro, junto de Winter Bastos e Fabio da Silva Barbosa, e em outras frentes como o jornal Impresso das comunidades, também ao lado de Fabio e na produção de vídeos para seus canais do YouTube - destaque para a série Vida de Cobrador. Sua  obra experimentou várias formas e linguagens. Vale a pensa pesquisar para conhecer mais sobre este artista, professor e trabalhador que teve a vida marcada pelas dificuldades que todo cidadão periférico passa e o livro Cavidade é um ótimo começo.